Introdução
(1) O arcabouço teórico da biologia do fenômeno social
(2) O “linguagear”, o “emocionar” e o “conversar”: três idéias fulcrais na teoria de Maturana
(3) Um novo olhar sobre a evolução humana
(4) O que funda o humano
(5) Redes de conversações
(6) O que funda o social
(7) Competição ou cooperação?
(8) Conversações matrísticas e patriarcais
(9) Uma teoria da democracia
(10) Uma teoria da cooperação baseada em Maturana
(11) Fukuyama e o debate atual sobre as origens biológicas da cooperação
(12) Visões biológicas competitivas e cooperativas
(13) Nem anjos nem demônios
Notas
Bibliografia
24 de mai. de 2008
APRESENTAÇÃO
Este livro contém excertos – rearrumados – de um outro livro, escrito por mim entre setembro de 2000 e junho de 2001, intitulado “Capital Social. Leituras de Tocqueville, Jacobs, Putnam, Fukuyama, Maturana, Castells e Levy” (Franco, 2001).
Na verdade, ao publicá-lo, corro o risco de ser acusado de plágio. Mas creio que o auto-plágio, neste caso, se justifica. E vou tentar dizer por quê.
A versão integral de “Capital Social” foi publicada em junho de 2001. De lá para cá, ouvi reclamações de que o livro era grande demais. Assustava os leitores. No início, não dei muita importância a tais observações, porque meu intuito foi, exatamente, o de ajudar os leitores a ganhar tempo, reunindo e resenhando alguns textos fundamentais, em alguns casos – como o da obra (quase) inteira de Humberto Maturana – de difícil reunião. Depois, acedi, quando tive de publicar uma tradução em inglês chamada “Social Capital. Abridge Version”, com a metade do tamanho do original.
Ocorre que a versão resumida só apareceu em inglês e muitas pessoas no Brasil – que não têm tempo para debulhar um tratado de 600 páginas – parecem estar interessadas, crescentemente, no papel da cooperação no desenvolvimento e, em particular, numa visão da colaboração diferente dessas “platitudes” correntes segundo as quais o ser humano é, intrinsecamente e ao mesmo tempo, cooperativo e competitivo. Para dizer o mínimo, tais visões revelam maneiras preguiçosas de (não) entrar no debate.
Ora, uma visão substantivamente diferente desta maneira medíocre, do tipo “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, de abordar a questão, é a do biólogo chileno Humberto Maturana Romesin. Maturana toma partido no debate e tenta mostrar que o ser humano é inerentemente cooperativo e não é inerentemente competitivo.
Numa época em que se ouve tanta bobagem sobre o primado da competição e seu papel motor no desenvolvimento, que se fala em “vantagem competitiva” e “competitividade sistêmica” como se fossem verdades evidentes por si mesmas ou conseqüências irretorquíveis de argumentações universalmente aceitas pela ciência, talvez valha a pena divulgar algumas idéias razoáveis sobre as origens da cooperação. Quem sabe alguém, algum dia, se anime a desenvolver os conceitos de vantagem cooperativa e cooperatividade sistêmica evidenciando o papel da cooperação no desenvolvimento e contribuindo para validar ou, pelo menos, para aumentar a verossimilhança das hipóteses dos que trabalham com o promissor conceito de capital social.
Quero dizer com tudo isso que o objetivo deste livrinho, que apenas recombina passagens do meu “Capital Social”, é ampliar a divulgação, entre nós, das idéias de Humberto Maturana sobre a cooperação, porque estou convencido de que, a partir daí, poderemos formar bases sólidas para uma inovadora concepção de desenvolvimento – o desenvolvimento humano e social sustentável – que não aprisione esse conceito nos marcos de uma racionalidade estrita e pobremente econômica, porém confira-lhe o status de categoria central nas tentativas teóricas de explicar o fenômeno da mudança social.
Setembro de 2001
Augusto de Franco
INTRODUÇÃO
Como deve ter ficado claro na apresentação deste livro, venho trabalhando com o conceito de “Capital Social”.
Ora, capital social nada mais é do que, em suma, cooperação ampliada socialmente. Só pode haver produção de capital social se os seres humanos fizerem coisas que contradizem seus interesses imediatos, como, por exemplo, cooperar sem esperar recompensa imediata, proporcional ou prevista em prazo azado. Evidentemente, isso deveria levar qualquer pesquisador sério a investigar as origens da cooperação. A esse respeito, a direita, em geral, assim como boa parte dos economistas que se metem a explicar o funcionamento das sociedades humanas, assumem sem muito pudor a visão de que o homem é naturalmente competitivo, não passando a cooperação de resultado de uma racionalização visando a (ou na expectativa de) obter maiores ganhos no longo prazo – mas, aí, todos esses se vêem em enormes dificuldades para explicar porque existe tanta cooperação espontânea no mundo real.
Nada de realmente científico nos obriga a aceitar a suposição de que os seres humanos são inerentemente competitivos. Os pressupostos filosófico-antropológicos dos economistas e dos sociólogos que querem ser aceitos pelos economistas são, na verdade, discursos axiológico-normativos. Supor que a competição seja uma característica inerente à natureza humana – porque o homem é um animal e os animais competem por recursos e, no caso dos primatas, também por poder (afirmativas muito questionáveis, como veremos adiante) – é um axioma de ideologia moral e, portanto, não pode ser validado pelas regras válidas da ciência o que se constrói a partir dessa suposição, tomada de antemão como verdadeira. Se é assim, pode-se igualmente supor – em resposta à pergunta de por que os seres humanos podem ter capacidade de cooperar – que o que possibilita aos seres humanos terem essa capacidade é a mesma coisa que os constitui como seres realmente humanos. Se é uma questão de preferência na escolha de que suposição tomar, há muitas razões indicando que deve-se preferir a última, inclusive por ser mais conforme a um comportamento universalmente observado de haver tanta cooperação espontânea no mundo real, que não poderia haver, com a freqüência observada, caso o ser humano fosse inerentemente competitivo.
Ao investigar seriamente as origens da cooperação, nos damos conta de que uma teoria do capital social é, pelo menos no que tange aos seus pressupostos, uma teoria do humano.
Talvez ninguém tenha desenvolvido isso tão bem como o biólogo chileno Humberto Maturana Romesin. Para fazer frente tanto às simplificações dos economistas – que comparecem em quantidade não desprezível quando se trata de justificar por que o humano tem de ser constitutivamente ou “geneticamente” competitivo – quanto para ter uma espécie de antídoto contra tais idéias perversas, desses e de outros – como os sociobiólogos –, deve-se reconstruir uma teoria da cooperação. E, na minha opinião, pode-se e deve-se fazer isso cientificamente; por exemplo, a partir de Maturana.
Os fundamentos da maioria das abordagens teóricas do capital social estão construídos sobre um terreno de pressupostos que quase nunca estão explícitos. Tais pressupostos, entretanto, existem. São pressupostos filosófico-antropológicos, que tomam suas matrizes conceituais, em geral, de empréstimo de outras ciências, como a biologia e a biologia da evolução, formulando, então, metahipóteses sociológicas (na verdade, diriam alguns, sub-sociológicas) a partir das hipóteses aventadas para explicar o funcionamento de organismos ou de partes de organismos (como o cérebro humano) ou para explicar comportamentos animais (como o dos chimpanzés). E não é possível analisar os fundamentos do conceito de capital social sem desvelá-los.
A tarefa de desvelar os pressupostos do conceito de capital social não é trivial, porquanto envolve elementos teóricos de procedências distintas e status diverso: assertivas tomadas axiomaticamente por sistemas (ou discursos) filosóficos, do tipo “o homem é um animal político” (Aristóteles); conclusões deslizadas da biologia para a antropologia social, como: “os seres humanos cooperam para competir” (Alexander, 1990); especulações com as teorias da evolução – por exemplo, sobre a existência de uma “natureza humana” –, que, supostamente, indicariam que o capital social “tende a ser gerado de forma instintiva pelos seres humanos” (Fukuyama, 1999); além, é claro, de todas as crenças morais (e imorais) subsumidas em teorias econômicas, como a de que não é possível explicar o comportamento de grupos, a não ser em termos dos interesses dos indivíduos e de que estes interesses são basicamente egoístas.
Ora, capital social nada mais é do que, em suma, cooperação ampliada socialmente. Só pode haver produção de capital social se os seres humanos fizerem coisas que contradizem seus interesses imediatos, como, por exemplo, cooperar sem esperar recompensa imediata, proporcional ou prevista em prazo azado. Evidentemente, isso deveria levar qualquer pesquisador sério a investigar as origens da cooperação. A esse respeito, a direita, em geral, assim como boa parte dos economistas que se metem a explicar o funcionamento das sociedades humanas, assumem sem muito pudor a visão de que o homem é naturalmente competitivo, não passando a cooperação de resultado de uma racionalização visando a (ou na expectativa de) obter maiores ganhos no longo prazo – mas, aí, todos esses se vêem em enormes dificuldades para explicar porque existe tanta cooperação espontânea no mundo real.
Nada de realmente científico nos obriga a aceitar a suposição de que os seres humanos são inerentemente competitivos. Os pressupostos filosófico-antropológicos dos economistas e dos sociólogos que querem ser aceitos pelos economistas são, na verdade, discursos axiológico-normativos. Supor que a competição seja uma característica inerente à natureza humana – porque o homem é um animal e os animais competem por recursos e, no caso dos primatas, também por poder (afirmativas muito questionáveis, como veremos adiante) – é um axioma de ideologia moral e, portanto, não pode ser validado pelas regras válidas da ciência o que se constrói a partir dessa suposição, tomada de antemão como verdadeira. Se é assim, pode-se igualmente supor – em resposta à pergunta de por que os seres humanos podem ter capacidade de cooperar – que o que possibilita aos seres humanos terem essa capacidade é a mesma coisa que os constitui como seres realmente humanos. Se é uma questão de preferência na escolha de que suposição tomar, há muitas razões indicando que deve-se preferir a última, inclusive por ser mais conforme a um comportamento universalmente observado de haver tanta cooperação espontânea no mundo real, que não poderia haver, com a freqüência observada, caso o ser humano fosse inerentemente competitivo.
Ao investigar seriamente as origens da cooperação, nos damos conta de que uma teoria do capital social é, pelo menos no que tange aos seus pressupostos, uma teoria do humano.
Talvez ninguém tenha desenvolvido isso tão bem como o biólogo chileno Humberto Maturana Romesin. Para fazer frente tanto às simplificações dos economistas – que comparecem em quantidade não desprezível quando se trata de justificar por que o humano tem de ser constitutivamente ou “geneticamente” competitivo – quanto para ter uma espécie de antídoto contra tais idéias perversas, desses e de outros – como os sociobiólogos –, deve-se reconstruir uma teoria da cooperação. E, na minha opinião, pode-se e deve-se fazer isso cientificamente; por exemplo, a partir de Maturana.
Os fundamentos da maioria das abordagens teóricas do capital social estão construídos sobre um terreno de pressupostos que quase nunca estão explícitos. Tais pressupostos, entretanto, existem. São pressupostos filosófico-antropológicos, que tomam suas matrizes conceituais, em geral, de empréstimo de outras ciências, como a biologia e a biologia da evolução, formulando, então, metahipóteses sociológicas (na verdade, diriam alguns, sub-sociológicas) a partir das hipóteses aventadas para explicar o funcionamento de organismos ou de partes de organismos (como o cérebro humano) ou para explicar comportamentos animais (como o dos chimpanzés). E não é possível analisar os fundamentos do conceito de capital social sem desvelá-los.
A tarefa de desvelar os pressupostos do conceito de capital social não é trivial, porquanto envolve elementos teóricos de procedências distintas e status diverso: assertivas tomadas axiomaticamente por sistemas (ou discursos) filosóficos, do tipo “o homem é um animal político” (Aristóteles); conclusões deslizadas da biologia para a antropologia social, como: “os seres humanos cooperam para competir” (Alexander, 1990); especulações com as teorias da evolução – por exemplo, sobre a existência de uma “natureza humana” –, que, supostamente, indicariam que o capital social “tende a ser gerado de forma instintiva pelos seres humanos” (Fukuyama, 1999); além, é claro, de todas as crenças morais (e imorais) subsumidas em teorias econômicas, como a de que não é possível explicar o comportamento de grupos, a não ser em termos dos interesses dos indivíduos e de que estes interesses são basicamente egoístas.
Os subdiscursos axiológico-normativos dos economistas, se se pode falar assim, não são os melhores exemplos de ocultamento de pressupostos, de vez que chegam a confundir-se com seus discursos, dando a impressão de que as teorias econômicas são, afinal, teorias morais (e, com freqüência, imorais). Isso fica claríssimo, por exemplo, nas críticas ao socialismo de Ludwig von Mises (1981) e Friedrich Hayek (1988). Mas, quando não se pode falar assim, como no caso da teoria econômica dos jogos e outras teorias baseadas na rational choice, constituem então os melhores exemplos de transposições mecânicas de noções de um âmbito teórico para outro, sem muita cerimônia semântica, sem muita consideração epistemológica pelos estatutos próprios dos diversos campos de conhecimento trafegados e, enfim, sem muito respeito pela natureza do objeto do conhecimento (ou pela natureza dos conhecimentos sobre o objeto) em questão: o ser humano ou os conjuntos de seres humanos.
Assim, o ser humano é tratado, por exemplo, na teoria econômica dos jogos, como um ser puramente racional e não como um ser emocional-racional – o que justifica os limites das explicações que alguns economistas fornecem para a solução dos chamados dilemas da ação coletiva. Com efeito, diante do dilema do prisioneiro, os seres humanos em geral, quer dizer, majoritariamente, na maioria das culturas, não escolhem, com tanta freqüência, a opção que seria racionalmente a mais vantajosa para si como indivíduos, porquanto trapacear não é uma opção emocionalmente confortável.
É tão simples como isso, mas os economistas “freqüentemente expressam surpresa pelo fato de haver tanta cooperação no mundo, uma vez que a teoria dos jogos sugere que as soluções cooperativas são, muitas vezes, difíceis de obter... [e continuam tendo grandes] dificuldades para explicar por que tantas pessoas votam, fazem doações a entidades caritativas ou permanecem leais aos seus empregadores, porque seus modelos de comportamento egoísta sugerem que é irracional fazer isso” (Fukuyama, 1999: 172). Por que – deve-se perguntar –, se “todo mundo sabe”, inclusive os economistas, que os seres humanos são sociáveis e são recompensados emocionalmente pelo reconhecimento social que advém do exercício da colaboração? Talvez essas dificuldades provenham de outro campo, não propriamente da teoria científica, mas da ideologia embutida na teoria, na visão que precisa ser impingida para aumentar a verosimilhança do discurso. De fato, o pressuposto básico da competição tem de estar presente para o esquema explicativo funcionar, legitimando (e contribuindo para reproduzir) um mundo de competição em que a explicação, então, funcione, garantindo o status sacerdotal daqueles que o explicam. Mas, justiça seja feita, tal comportamento não é privilégio de economistas – é o que atestam, por exemplo, outras perversões, vale lembrar: a sociologia de Garret Hardin, a sociobiologia de Edward Wilson e a antropologia de Robert Ardrey – como tão bem mostrou William Irwin Thompson (1987: 23).
Assim, o ser humano é tratado, por exemplo, na teoria econômica dos jogos, como um ser puramente racional e não como um ser emocional-racional – o que justifica os limites das explicações que alguns economistas fornecem para a solução dos chamados dilemas da ação coletiva. Com efeito, diante do dilema do prisioneiro, os seres humanos em geral, quer dizer, majoritariamente, na maioria das culturas, não escolhem, com tanta freqüência, a opção que seria racionalmente a mais vantajosa para si como indivíduos, porquanto trapacear não é uma opção emocionalmente confortável.
É tão simples como isso, mas os economistas “freqüentemente expressam surpresa pelo fato de haver tanta cooperação no mundo, uma vez que a teoria dos jogos sugere que as soluções cooperativas são, muitas vezes, difíceis de obter... [e continuam tendo grandes] dificuldades para explicar por que tantas pessoas votam, fazem doações a entidades caritativas ou permanecem leais aos seus empregadores, porque seus modelos de comportamento egoísta sugerem que é irracional fazer isso” (Fukuyama, 1999: 172). Por que – deve-se perguntar –, se “todo mundo sabe”, inclusive os economistas, que os seres humanos são sociáveis e são recompensados emocionalmente pelo reconhecimento social que advém do exercício da colaboração? Talvez essas dificuldades provenham de outro campo, não propriamente da teoria científica, mas da ideologia embutida na teoria, na visão que precisa ser impingida para aumentar a verosimilhança do discurso. De fato, o pressuposto básico da competição tem de estar presente para o esquema explicativo funcionar, legitimando (e contribuindo para reproduzir) um mundo de competição em que a explicação, então, funcione, garantindo o status sacerdotal daqueles que o explicam. Mas, justiça seja feita, tal comportamento não é privilégio de economistas – é o que atestam, por exemplo, outras perversões, vale lembrar: a sociologia de Garret Hardin, a sociobiologia de Edward Wilson e a antropologia de Robert Ardrey – como tão bem mostrou William Irwin Thompson (1987: 23).
Na verdade, a teoria econômica dos jogos não é bem humana, não por ser uma teoria matemática ou matematizada, mas – no sentido de que é uma teoria indevidamente transposta para o campo das ciências humanas – por não se aplicar aos seres humanos reais e sim a seres humanos idealizados, cujos cérebros funcionam como CPUs de computador.
A capacidade de produzir capital social é constituída, fundamentalmente, pela capacidade que tem o ser humano de colaborar ou de cooperar com outros seres humanos. O último termo é melhor por ser mais abrangente: “co-laborar” evoca a noção de trabalho conjunto, enquanto que “co-operar” se refere a quaisquer (oper)ações conjuntas, algumas delas fundamentais porquanto constitutivas do humano, como é o caso, por exemplo, na visão de Humberto Maturana (1988a), compartilhada aqui, do “con-versar”. Para descobrir de onde vem esta “capacidade”, é preciso, pois, investigar as origens humano-sociais da cooperação.
Muito bem. Mas o que leva os seres humanos a cooperar? Essa pergunta precisa ser respondida, se quisermos continuar trabalhando com o conceito de “Capital Social”. Em outras palavras: uma teoria do capital social pressupõe uma teoria da cooperação.
Dizendo ainda de outra maneira: qualquer teoria do capital social é, no que tange aos seus pressupostos, uma teoria da cooperação. A teoria biológica do fenômeno social – uma espécie de anti-sociobiologia e de contra-social-darwinismo –, desenvolvida pelo biólogo Humberto Maturana, pode fornecer a base para uma teoria da cooperação humana que melhor corresponda à noção de capital social.
A capacidade de produzir capital social é constituída, fundamentalmente, pela capacidade que tem o ser humano de colaborar ou de cooperar com outros seres humanos. O último termo é melhor por ser mais abrangente: “co-laborar” evoca a noção de trabalho conjunto, enquanto que “co-operar” se refere a quaisquer (oper)ações conjuntas, algumas delas fundamentais porquanto constitutivas do humano, como é o caso, por exemplo, na visão de Humberto Maturana (1988a), compartilhada aqui, do “con-versar”. Para descobrir de onde vem esta “capacidade”, é preciso, pois, investigar as origens humano-sociais da cooperação.
Muito bem. Mas o que leva os seres humanos a cooperar? Essa pergunta precisa ser respondida, se quisermos continuar trabalhando com o conceito de “Capital Social”. Em outras palavras: uma teoria do capital social pressupõe uma teoria da cooperação.
Dizendo ainda de outra maneira: qualquer teoria do capital social é, no que tange aos seus pressupostos, uma teoria da cooperação. A teoria biológica do fenômeno social – uma espécie de anti-sociobiologia e de contra-social-darwinismo –, desenvolvida pelo biólogo Humberto Maturana, pode fornecer a base para uma teoria da cooperação humana que melhor corresponda à noção de capital social.
Porém, a tarefa de extrair das idéias de Maturanauma teoria compreensível da cooperação não é trivial, porquanto tais idéias ainda estão imersas em certa obscuridade. Além disso, as inovadoras abordagens de Maturana apresentam uma estrutura conceitual bem mais complexa do que as dos esforços mais conhecidos da investigação contemporânea sobre as origens da cooperação (e/ou da competição) realizados por antropólogos, sociólogos, psicólogos e mesmo por biólogos que trabalham com teorias da evolução. Ou seja, o debate atual sobre o tema não abriu espaço para uma análise mais ampliada das idéias de Humberto Maturana e, assim, não ensejou sua passagem pelas peneiras das múltiplas interpretações, que acabam, às vezes,“domesticando”, mas também aclarando, simplificando e ubicando os conceitos dentro de marcos teóricos mais amigáveis.
A conclusão a que cheguei é a seguinte. Há uma teoria da cooperação implícita nos escritos de Maturana, cujos elementos principais, apenas elencados em três conjuntos, de modo não axiomático, são estes:
Primeiro conjunto: a cooperação está na constituição do humano.
1 - O que nos torna humanos é a linguagem.
2 - Não é, fundamentalmente, o tamanho do cérebro o que torna possível a linguagem, e, sim, o modo de conviver.
3 - O modo de conviver que torna possível a linguagem jamais se teria conservado sem uma forte emoção amistosa capaz de permitir a intimidade na convivência com certa permanência.
A conclusão a que cheguei é a seguinte. Há uma teoria da cooperação implícita nos escritos de Maturana, cujos elementos principais, apenas elencados em três conjuntos, de modo não axiomático, são estes:
Primeiro conjunto: a cooperação está na constituição do humano.
1 - O que nos torna humanos é a linguagem.
2 - Não é, fundamentalmente, o tamanho do cérebro o que torna possível a linguagem, e, sim, o modo de conviver.
3 - O modo de conviver que torna possível a linguagem jamais se teria conservado sem uma forte emoção amistosa capaz de permitir a intimidade na convivência com certa permanência.
4 - Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas, em que haja aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações de ações, não se pode esperar que surja a linguagem.
5 - A linguagem só pode surgir na cooperação.
6 - A cooperação está na constituição do humano.
Segundo conjunto: a cooperação está na fundação do social.
1 - Só há sistema social se houver recorrência de interações que resultem na coordenação condutual dos seres vivos que o compõem, quando tal recorrência de interações passa a ser um mecanismo mediante o qual esses seres vivos realizam sua autopoiesis.
2 - A cooperação se dá em todas as relações sociais.
3 - Nem todas as relações humanas são sociais, tampouco o são todas as coletividades humanas, porque nem todas se fundam na operacionalidade da aceitação mútua.
4 - Distintas emoções especificam distintos domínios de ações.
5 - Coletividades humanas fundadas em emoções não centradas na emoção amistosa que permite a intimidade na convivência com certa permanência – ou o ser com o outro – estarão constituídas em outros domínios de ações que não o da cooperação e do compartilhamento – em coordenações de ações que implicam a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência – e não serão comunidades sociais.
6 - A cooperação não se dá nas relações de dominação e submissão; a obediência não é um ato de cooperação.
7 - Afirmamos que o indivíduo humano se realiza na defesa competitiva de seus interesses porque não nos damos conta de que toda individualidade é social e só se realiza quando inclui cooperativamente em seus interesses os interesses dos outros seres humanos que a sustentam.
Terceiro conjunto: a competição não funda o social nem constitui o humano.
1 - Não existe, biologicamente falando, contradição entre o social e o individual. Toda a contradição que a humanidade vive nesse domínio é de origem cultural.
2 - A conduta social está fundada na cooperação e não na competição.
3 - O fenômeno da competição é cultural.
4 - A cultura patriarcal nega a colaboração.
5 - A cultura patriarcal se caracteriza pela conservação de um modo de coexistência que valoriza a competição.
6 - O fenômeno da competição não se dá no âmbito biológico.
7 - Seres vivos não humanos não competem.
8 - Se dois animais se encontram diante de um alimento e somente um come, isso não é competição, porque não é central para o que se passa com o que come o fato de que o outro não coma. No âmbito humano, ao contrário, , a competição constitui-se culturalmente quando o fato de que outro não obtenha o que alguém obtém é fundamental para constituir o modo de relação.
9 - O ato de compartilhar alimentos – uma forma de colaboração –, que está evolutivamente na origem do humano, não consiste em deixar que o outro coma a seu lado e, sim, em transferir o que se tem para o outro.
10 - A competição tem ganhadores e perdedores. A competição é ganha quando o outro fracassa diante de nós, e se constitui (em escala ampliada) quando a perspectiva de que isso ocorra de fato torna-se culturalmente desejável.
11 - A competição não participa da evolução do humano, que se dá pela conservação de um fenótipo ontogênico ou um modo de vida no qual o linguagear pode surgir.
12 - A linguagem não poderia ter surgido na competição.
13 - A competição não pode ser constitutiva do humano.
5 - A linguagem só pode surgir na cooperação.
6 - A cooperação está na constituição do humano.
Segundo conjunto: a cooperação está na fundação do social.
1 - Só há sistema social se houver recorrência de interações que resultem na coordenação condutual dos seres vivos que o compõem, quando tal recorrência de interações passa a ser um mecanismo mediante o qual esses seres vivos realizam sua autopoiesis.
2 - A cooperação se dá em todas as relações sociais.
3 - Nem todas as relações humanas são sociais, tampouco o são todas as coletividades humanas, porque nem todas se fundam na operacionalidade da aceitação mútua.
4 - Distintas emoções especificam distintos domínios de ações.
5 - Coletividades humanas fundadas em emoções não centradas na emoção amistosa que permite a intimidade na convivência com certa permanência – ou o ser com o outro – estarão constituídas em outros domínios de ações que não o da cooperação e do compartilhamento – em coordenações de ações que implicam a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência – e não serão comunidades sociais.
6 - A cooperação não se dá nas relações de dominação e submissão; a obediência não é um ato de cooperação.
7 - Afirmamos que o indivíduo humano se realiza na defesa competitiva de seus interesses porque não nos damos conta de que toda individualidade é social e só se realiza quando inclui cooperativamente em seus interesses os interesses dos outros seres humanos que a sustentam.
Terceiro conjunto: a competição não funda o social nem constitui o humano.
1 - Não existe, biologicamente falando, contradição entre o social e o individual. Toda a contradição que a humanidade vive nesse domínio é de origem cultural.
2 - A conduta social está fundada na cooperação e não na competição.
3 - O fenômeno da competição é cultural.
4 - A cultura patriarcal nega a colaboração.
5 - A cultura patriarcal se caracteriza pela conservação de um modo de coexistência que valoriza a competição.
6 - O fenômeno da competição não se dá no âmbito biológico.
7 - Seres vivos não humanos não competem.
8 - Se dois animais se encontram diante de um alimento e somente um come, isso não é competição, porque não é central para o que se passa com o que come o fato de que o outro não coma. No âmbito humano, ao contrário, , a competição constitui-se culturalmente quando o fato de que outro não obtenha o que alguém obtém é fundamental para constituir o modo de relação.
9 - O ato de compartilhar alimentos – uma forma de colaboração –, que está evolutivamente na origem do humano, não consiste em deixar que o outro coma a seu lado e, sim, em transferir o que se tem para o outro.
10 - A competição tem ganhadores e perdedores. A competição é ganha quando o outro fracassa diante de nós, e se constitui (em escala ampliada) quando a perspectiva de que isso ocorra de fato torna-se culturalmente desejável.
11 - A competição não participa da evolução do humano, que se dá pela conservação de um fenótipo ontogênico ou um modo de vida no qual o linguagear pode surgir.
12 - A linguagem não poderia ter surgido na competição.
13 - A competição não pode ser constitutiva do humano.
Nas páginas seguintes, vamos situar os três conjuntos de assertivas expostos acima no contexto das elaborações teóricas de Humberto Maturana.
1 - O ARCABOUÇO TEÓRICO DA BIOLOGIA DO FENÔMENO SOCIAL
Um esforço para sistematizar uma teoria da cooperação com base nas idéias de Maturana deveria começar, ao meu ver, pelo esforço de compreender o arcabouço teórico construído por ele a partir de meados da década de 80 (1). Considerando que o leitor não terá muita facilidade em reunir todo esse disperso material (citado na nota acima), vamos transcrever, ao longo deste livro, as principais passagens dos escritos de Maturana, no período 1985-1993, que têm a ver com o tema em tela. Penso que tais passagens são tão importantes para construir novos fundamentos – alternativos a tudo ou a quase tudo o que comparece no debate contemporâneo – para uma teoria da cooperação, que vale a pena correr o risco de ser exaustivo.
Tudo começa com a observação de que parece haver uma inescapável dualidade no ser humano. Os seres humanos são seres sociais (vivem o seu ser quotidiano em contínua imbricação com o ser de outros seres humanos) e, ao mesmo tempo, são indivíduos (vivem o seu ser quotidiano como um contínuo devir de experiências individuais intransferíveis). Uma teoria da cooperação baseada nas idéias de Maturana é uma teoria para mostrar que podem existir “sistemas sociais cujos membros vivem a harmonia dos interesses aparentemente contraditórios da sociedade e dos indivíduos que a compõem” (Maturana, 1985a: 72). Assim, para mostrar que o ser humano individual é social e o ser humano social é individual, Maturana vai começar admitindo cinco pressupostos.
O primeiro pressuposto diz respeito ao enfoque biológico – e não filosófico, sociológico ou psicológico – que será adotado por ele. Interrogando os critérios pelos quais se pode aceitar como científica uma resposta para a pergunta: “o que é um sistema social?”, Maturana afirma que “as respostas científicas, quer dizer, as respostas aceitáveis pelos cientistas devem consistir na proposição de mecanismos (sistemas concretos ou conceituais) que, no seu operar (funcionar), geram todos os fenômenos concernidos na pergunta” (Maturana, 1985a: 72). Baseado nesse critério, ele vai propor um mecanismo biológico como gerador dos “sistemas que exibem, em seu operar, todos os fenômenos que observamos nos sistemas que quotidianamente reconhecemos como sistemas sociais” (Idem) (n. g.).
O segundo pressuposto diz respeito ao conceito de “ser vivo”. “Os seres vivos, incluídos os seres humanos, somos sistemas determinados estruturalmente. Isto quer dizer que tudo ocorre em nós na forma de mudanças estruturais, determinadas em nossa estrutura, seja como resultado de nossa própria dinâmica estrutural interna, seja como mudanças estruturais desencadeadas pelas nossas interações com o meio, porém não determinadas por este último. Além disso, a conduta (comportamento), observável, em nós mesmos, por exemplo, não escapa disso, e o que vemos como comportamento em qualquer ser vivo, sob a forma de ações em um contexto determinado é, por assim dizer, a coreografia da sua dança estrutural. Conseqüentemente, a conduta de um ser vivo é adequada somente se suas mudanças estruturais ocorrem em congruência com as mudanças estruturais do meio, e isso só ocorre enquanto sua estrutura permanece congruente com o meio durante sua sucessão de contínua mudança estrutural” (Maturana, 1985a: 73).
Maturana define o conceito de estrutura: a estrutura de um sistema é sua feitura (ou “fazedura”), os componentes e relações que o fazem como (ou o tornam) um caso particular de uma classe. Portanto, a estrutura ou feitura de um sistema pode mudar sem que este desapareça, desde que tais mudanças se dêem com conservação da organização que o define. A organização de um sistema, por sua vez, consiste nas relações que o constituem como unidade e definem sua identidade. Um sistema conserva sua identidade enquanto conserva sua organização.
Maturana define o conceito de estrutura: a estrutura de um sistema é sua feitura (ou “fazedura”), os componentes e relações que o fazem como (ou o tornam) um caso particular de uma classe. Portanto, a estrutura ou feitura de um sistema pode mudar sem que este desapareça, desde que tais mudanças se dêem com conservação da organização que o define. A organização de um sistema, por sua vez, consiste nas relações que o constituem como unidade e definem sua identidade. Um sistema conserva sua identidade enquanto conserva sua organização.
Para Maturana – e aqui se encontra a matriz de toda a sua construção teórica –, “os seres vivos, como sistemas determinados estruturalmente, são sistemas que, em sua dinâmica estrutural, se constituem e se delimitam como redes fechadas de produção de seus componentes, a partir de seus próprios componentes e de substâncias que tomam do meio: os seres vivos são verdadeiros redemoinhos de produção de componentes, em virtude do que as substâncias que tomam do meio, ou vertem no meio, seguem participando transitoriamente do ininterrupto intercâmbio de componentes que determina seu contínuo revolver produtivo. É esta condição de contínua produção de si mesmos, por meio da contínua produção e intercâmbio de seus componentes, o que caracteriza os seres vivos e é isto o que se perde no fenômeno da morte” (Maturana, 1985a: 73). Maturana está se referindo aqui ao conceito de autopoiesis (autocriação), cuja fundamentação se encontra no livro pioneiro – “De máquinas y seres vivos” – que escreveu com Francisco Varela no início dos anos 70 (Cf. Maturana e Varela, 1973). Em suma: “os seres vivos são sistemas autopoiéticos e... estão vivos somente enquanto estão em autopoiesis” (Idem).
Qualquer sistema constituído como unidade, como uma rede de produção de componentes que, em suas interações, geram a mesma rede que os produz e constituem seus limites como parte do próprio sistema no seu espaço de existência, é um sistema autopoiético. Os seres vivos são sistemas autopoiéticos moleculares e existem como tais no espaço molecular. Em princípio, pode haver sistemas autopoiéticos em qualquer espaço no qual se possa realizar a organização autopoiética.
Maturana esclarece, em outro lugar (Maturana, 1985b: 58), que “nenhuma classe particular de moléculas determina por si só as características de um ser vivo. Um ser vivo é um ser vivo devido a que é um sistema constituído como unidade em sua organização autopoiética, não porque esteja composto por um tipo particular de moléculas. Ao mesmo tempo, um ser vivo é como é, em cada instante, não porque algum de seus componentes predetermine como deva ser, senão porque começou com certa estrutura inicial e teve uma certa história particular de interações” (Idem). Assim: “a) todo ser vivo se realiza de fato em uma história de interações; b) se a estrutura inicial de dois seres vivos é a mesma e eles têm a mesma história de interações, suas ontogenias como histórias de transformações estruturais serão idênticas; e c) se dois seres vivos têm a mesma estrutura inicial, porém distintas histórias de interações, suas ontogenias como histórias de mudanças estruturais serão diferentes” (Idem-idem).
Maturana esclarece, em outro lugar (Maturana, 1985b: 58), que “nenhuma classe particular de moléculas determina por si só as características de um ser vivo. Um ser vivo é um ser vivo devido a que é um sistema constituído como unidade em sua organização autopoiética, não porque esteja composto por um tipo particular de moléculas. Ao mesmo tempo, um ser vivo é como é, em cada instante, não porque algum de seus componentes predetermine como deva ser, senão porque começou com certa estrutura inicial e teve uma certa história particular de interações” (Idem). Assim: “a) todo ser vivo se realiza de fato em uma história de interações; b) se a estrutura inicial de dois seres vivos é a mesma e eles têm a mesma história de interações, suas ontogenias como histórias de transformações estruturais serão idênticas; e c) se dois seres vivos têm a mesma estrutura inicial, porém distintas histórias de interações, suas ontogenias como histórias de mudanças estruturais serão diferentes” (Idem-idem).
O terceiro pressuposto se refere à dinâmica da mudança estrutural. “Nos sistemas em contínua mudança estrutural, como os seres vivos, a mudança estrutural se dá tanto como resultado de sua dinâmica interna como desencadeado por suas interações com um meio que também está em contínua mudança. A conseqüência disso é que, a partir da estrutura inicial do ser vivo, ao começar sua existência, o meio já aparece selecionando nele, ao desencadear mudanças determinadas em sua estrutura, as conseqüências de mudanças estruturais que ocorrem ao longo de seu viver, em uma história de sobrevida que necessariamente ocorre na congruência do ser vivo e do meio, até que o ser vivo morra porque esta congruência se perde” (Maturana, 1985a: 74). Maturana quer dizer, em suma, que “a estrutura de cada ser vivo é, em cada instante, o resultado do caminho de mudança estrutural que seguiu a partir de sua estrutura inicial, como conseqüência de suas interações no meio em que lhe coube viver” (Idem).
O quarto pressuposto diz respeito à conservação da organização. “Os seres vivos participam dos fenômenos de que participam como seres vivos somente enquanto a organização que os define como seres vivos (a autopoiesis) permanece invariante” (Maturana, 1985a: 74). Isso evoca a existência de uma relação universal: “algo permanece, quer dizer, algo mantém sua identidade, sejam quais forem suas mudanças estruturais, somente enquanto a organização que define sua identidade não muda. A organização de um sistema consiste em relações entre componentes que lhe conferem identidade de classe (cadeira, automóvel, fábrica de refrigeradores, ser vivo etc.). O modo particular como se realiza a organização de um sistema particular (classe de componentes e relações concretas que se dão entre eles) é sua estrutura. A organização de um sistema é, necessariamente, invariante, mas sua estrutura pode mudar. A organização que define um sistema como ser vivo é a organização autopoiética. Por isso, um ser vivo permanece vivo enquanto sua estrutura, sejam quais forem suas mudanças, realiza sua organização autopoiética, e morre se, em suas mudanças estruturais, não se conserva esta organização” (Idem). Novamente, aqui, uma relação universal é evocada: “todo sistema se desintegra quando, em suas mudanças estruturais, não se conserva sua organização. Assim, por exemplo, um relógio deixa de ser relógio (perde sua organização de relógio) se uma das mudanças estruturais é a ruptura de sua corda...” [Em suma:] “o vivo de um ser vivo está determinado nele, não fora dele” (Idem-idem) (n. i.).
O quinto e último pressuposto se refere à conservação da adaptação. “Os seres vivos existem sempre imersos em um meio com o qual interagem. Além disso, como o viver de um ser vivo transcorre em contínuas mudanças estruturais – como resultado de sua própria dinâmica interna ou desencadeadas pelas suas interações com o meio –, um ser vivo conserva sua organização em um meio somente se sua estrutura e a estrutura do meio são congruentes e se esta congruência se conserva. Se não se conserva a congruência estrutural entre ser vivo e meio, as interações com o meio desencadeiam no ser vivo mudanças estruturais que o desintegram e ele morre. Essa congruência estrutural entre ser vivo e meio (seja qual for este meio) chama-se adaptação. Conseqüentemente, um ser vivo vive somente enquanto conserva sua adaptação ao meio em que existe, e somente enquanto, ao conservar sua adaptação, conserva também sua organização” (Maturana, 1985a: 75). Mais uma vez, é evocada, aqui, uma relação universal: “todo sistema existe somente na conservação de sua adaptação e de sua organização, [e somente] em circunstâncias nas quais a conservação de uma envolva a conservação da outra” (Idem) (n. i.). Em suma, “a estrutura presente de um ser vivo é sempre o resultado de uma história na qual suas mudanças estruturais foram congruentes com as mudanças estruturais do meio... [Além disso], todo ser vivo se encontra onde se encontra em seu presente como resultado dessa história, em uma contínua transformação de seu presente a partir de seu presente” (Idem-idem) (n. i.).
Baseado nesses cinco pressupostos – que definem o que ele entende por abordagem biológica – Maturana vai, então, tentar responder, de modo bastante inovador, a pergunta: “o que é um sistema social?”
“Cada vez que os membros de um conjunto de seres vivos constituem, com sua conduta (comportamento), uma rede de interações que opera para eles como um meio no qual eles se realizam como seres vivos e no qual eles, portanto, conservam sua organização e adaptação e existem numa coderiva contingente à sua participação na referida rede de interações, temos um sistema social” (Maturana, 1985a: 76). A definição é surpreendente. Sobretudo porque, em seguida, ele sustenta que:
a) “a organização descrita acima é necessária e suficiente para caracterizar um sistema social; e
b) um sistema particular, definido por essa organização, gera todos os fenômenos próprios de um sistema social em um marco de conduta (comportamento) especificado pelo tipo de seres vivos que o integram” (Idem).
Maturana está se referindo aqui apenas a uma classe de sistemas: “Esta classe... é o resultado inevitável das interações recorrentes que se dão entre seres vivos. E cada vez que [tais interações] se dão com alguma permanência temos esse tipo de sistemas”, os quais ele denomina de “sistemas sociais, porquanto os fenômenos que neles se dão são indistinguíveis, em sua forma e modo de geração, dos fenômenos que observamos nos sistemas que chamamos de sistemas sociais no âmbito humano” (Maturana, 1985a: 76) (n. i.) (g. a.).
Daí decorrem seis implicações, de aplicabilidade universal – válidas, portanto, para qualquer tipo de sistema social:
Um sistema social conserva a vida dos seus membros. “É constitutivo de um sistema social o fato de que seus componentes sejam seres vivos...” Um sistema social só se constitui se estes seres vivos, no processo de integrá-lo, conservarem nele sua organização e adaptação. “Por isso, qualquer tentativa de caracterizar um sistema social de uma maneira que desconheça que a conservação da vida de seus componentes é condição constitutiva do seu operar está equivocada e especifica um sistema que não gera os fenômenos próprios de um sistema social. Assim, por exemplo, um conjunto humano que não incorpora a conservação da vida de seus membros como parte de sua definição operatória como sistema, não constitui um sistema social” (Maturana, 1985a: 76).
Um sistema social é caracterizado pelo comportamento dos seus membros. “Cada sistema social particular, quer dizer, cada sociedade se distingue pelas características da rede de interações que realiza. Assim, por exemplo, uma comunidade religiosa, um clube, uma colmeia de abelhas, na medida em que são sistemas sociais, são sociedades distintas, porque seus membros realizam condutas distintas ao integrá-las (os comportamentos adequados a cada uma delas são diferentes). Para ser membro de uma sociedade, basta realizar as condutas que definem seus membros” (Maturana, 1985a: 76-7).
Não existem membros supérfluos num sistema social. “Na medida em que um sistema social é constituído por seres vivos, são todos e cada um dos seres vivos que o integram os que de fato o constituem com o operar de suas propriedades. Portanto... não há componentes supérfluos em um sistema social; se um componente se perde, o sistema social muda. Todo sistema social está exposto à mudança em virtude da morte de seus componentes. Além disso, como as propriedades e características de cada ser vivo estão determinadas por sua estrutura, na medida em que as estruturas dos seres vivos que integram um sistema social mudam, mudam igualmente suas propriedades e o sistema social que geram com suas condutas também muda” (Maturana, 1985a: 77). Maturana considera um sistema cuja estrutura muda enquanto conserva sua organização e sua correspondência com o meio como um sistema em deriva estrutural. Em geral, a deriva é uma mudança de posição de um sistema que conserva sua forma e sua correspondência com o meio em que se produz a mudança.
As propriedades dos membros de um sistema social são selecionadas pelos próprios membros desse sistema. “Na medida em que um sistema social é o meio no qual seus membros se realizam como seres vivos e o meio no qual conservam sua organização e adaptação, um sistema social opera necessariamente como seletor da mudança estrutural de seus componentes e, portanto, de suas propriedades. Com efeito, na medida em que são os componentes de um sistema social os que de fato o constituem e realizam com sua conduta, são os componentes de um sistema social os que, com sua conduta, de fato selecionam as propriedades dos componentes do mesmo sistema social que eles constituem. Toda sociedade é conservadora de sua organização como tal e das características dos componentes que a geram” (Maturana, 1985a: 77).
Um sistema social é mudado por seus membros. “Em geral, os componentes de um sistema social podem participar de outras interações, além daquelas em que necessariamente devem participar ao integrá-lo, quer dizer, podem participar de interações fora do sistema social que constituem. Mas se, como resultado de tais interações, a estrutura dos componentes de um sistema social muda, de modo que sua maneira de integrá-lo muda, sem destruir sua organização, a estrutura do sistema também muda. Para um observador, este sistema aparece como o mesmo sistema, porém constituído como uma rede diferente de condutas. O mesmo pode ocorrer com a incorporação de novos membros em um sistema social, com uma história prévia de interações independente dele” (Maturana, 1985a: 77).
Todo sistema social está em contínua mudança estrutural. “Ainda que todo sistema social seja constitutivamente conservador, todo sistema social está também em contínua mudança estrutural, devido: a) à perda de membros por morte ou migração; b) à incorporação de novos membros com propriedades adicionais àquelas necessárias para sua incorporação, diferentes das de outros membros; e c) a mudanças nas propriedades de seus membros, que surgem de mudanças estruturais não desencadeadas (selecionadas) por suas interações dentro do sistema social que integram, em virtude de interações realizadas fora do sistema ou como resultado de sua própria dinâmica interna” (Maturana, 1985a: 77-8). Maturana conclui: “o devir histórico de qualquer sociedade é sempre o resultado destes dois processos: conservação e variação” (Idem).
Evidentemente, estamos aqui diante de uma profunda reconceituação de sistema social que altera, também profundamente, a nossa compreensão das sociedades humanas. Das seis proposições acima, universalmente válidas para qualquer sistema social, Maturana vai inferir dez teoremas aplicáveis às sociedades humanas.
Primeiro. A natureza constitutivamente conservadora dos sistemas sociais. Se os sistemas sociais são constitutivamente conservadores, então isso também ocorre no domínio social humano. “Os membros de qualquer sociedade humana realizam essa sociedade com sua conduta e, com ela, continuamente selecionam em seus membros, antigos e novos, essas mesmas condutas (comportamentos). Assim, por exemplo, em um clube, as condutas de seus membros definem o clube, eliminando dele todos aqueles que não têm condutas apropriadas e confirmando como membros todos aqueles que as têm, sendo que condutas apropriadas são aquelas com as quais, eles mesmos, os membros do clube, definem o clube. O mesmo ocorre nas famílias, nas comunidades religiosas... enfim, em qualquer sociedade humana” (Maturana, 1985a: 78).
Segundo. Os seres humanos podem ser membros de vários sistemas sociais. Se, no processo de viver, os seres humanos realizam, em lugar e/ou tempo oportunos, as condutas próprias de vários sistemas sociais, então eles podem ser membros desses vários sistemas sociais simultaneamente ou sucessivamente. “Assim, podemos ser, imbricadamente e sem contradições, membros de uma família, de uma comunidade religiosa, de um clube, de uma nação, por meio das distintas dimensões do nosso viver. Porém, se, ao realizar as distintas condutas próprias de distintos sistemas sociais, não o fazemos envolvendo de fato nossas vidas, mas apenas pretendendo fazê-lo, não somos realmente membros desses sistemas sociais e estaremos apenas imersos em suas respectivas tramas condutuais (comportamentais) até que, ao ser descobertos, sejamos expulsos como hipócritas e parasitas” (Maturana, 1985a: 78).
Terceiro. A linguagem é o mecanismo fundamental de interação no operar dos sistemas sociais humanos. “A linguagem, como característica do ser humano, surge com o humano no suceder social que lhe dá origem... A conduta primária de coordenação condutual (comportamental) na ação sobre o mundo, gerada e aprendida ao longo da vida dos membros de um sistema social qualquer, como resultado de suas interações nesse sistema, é descrita como conduta lingüística por um observador que vê cada elemento condutual como uma palavra descritora do mundo ao assinalar objetos do mundo. Mas nesse operar social primário não há objetos para os membros do sistema social, pois eles só se movem na coordenação condutual da ação que tiveram que adquirir (aprender) ao fazer-se membros dele. No domínio social humano, e como resultado das interações que têm lugar entre os membros de uma sociedade humana, há linguagem quando há recursividade lingüística, quer dizer, quando um observador vê coordenação condutual sobre coordenação condutual ” (Maturana, 1985a: 79).
Para Maturana, o fenômeno da linguagem tem lugar quando um observador distingue, nas interações de dois ou mais organismos, coordenações condutuais de coordenações condutuais consensuais. Quer dizer, a linguagem surge quando há recursão (recorrência) no âmbito das coordenações condutuais. Disso se infere que a linguagem surge e se dá como fenômeno social, e que as palavras são coordenações de ação, não entes abstratos ou referências a entes independentes.
É preciso dizer o que Maturana entende por recursão (traduzido precariamente aqui por “recorrência”): a recursão (recorrência) ocorre cada vez que uma operação se aplica sobre as conseqüências de sua aplicação. Assim, por exemplo, quando se extrai a raiz quadrada de um número e, em seguida, se extrai a raiz quadrada do resultado, há uma recursão (recorrência). Já que o exemplo fornecido por Maturana foi matemático, talvez se devesse usar – no lugar de recursão (ou de recorrência) – o conceito de ‘iteração’ (literalmente, repetição), que designa o processo pelo qual uma função opera repetidamente sobre si mesma, o qual tem sido usado na modelagem matemática de processos em que ocorrem laços de realimentação (de auto-reforço), como parece ser o caso.
Cada vez que um observador distingue interações recorrentes (iteradas) entre organismos como coordenações de ações num meio, o que o observador distingue são coordenações condutuais. Cada vez que o observador distingue coordenações condutuais que surgem como resultado de uma história particular de interações, o observador distingue coordenações condutuais consensuais. O termo consensual, portanto, indica que a forma das coordenações condutuais é função de uma história particular.
Maturana supõe que a linguagem tenha surgido, evolutivamente, em algum momento há mais de três milhões de anos na história da linhagem humana. “Há linguagem quando os participantes de um domínio lingüístico usam palavras (coordenação condutual primária) ao coordenar suas ações sobre as distintas circunstâncias que suas coordenações condutuais primárias configuram – as quais aparecem, assim, pela primeira vez, assinaladas como unidades independentes, isto é, como objetos. Disso resulta, por um lado, a produção de um mundo de ações e objetos que só têm existência e significado no domínio social em que surgem e, por outro lado, a produção da auto-observação, que nos leva a distinguir como objetos a nós mesmos e a nossas circunstâncias, na reflexão que constitui a autoconsciência como fenômeno que também tem existência e sentido somente no domínio social” (Maturana, 1985a: 79). Para Maturana, portanto, consciência e eu são fenômenos sociais na linguagem, quer dizer, consciência e eu são distinções que não têm sentido fora do social.
Cabe esclarecer, todavia, o que Maturana entende por objeto. Com o surgimento da linguagem, surgem os objetos como recursões (iterações) de coordenações condutuais consensuais, nas quais a recorrência nas coordenações condutuais oculta as condutas (comportamentos ou ações) consensuais coordenadas. Na gramática, os objetos aparecem como substantivos; são distinções estáticas de ações.
Quarto. O papel fundante da cooperação. Se não houver recorrência de interações cooperativas, então não pode existir nenhum sistema social. “Para que um sistema social exista deve ocorrer a recorrência das interações que resultam na coordenação condutual de seus membros; quer dizer, deve ocorrer a recorrência de interações cooperativas. De fato, se há recorrência de interações cooperativas entre dois ou mais seres vivos, o resultado pode ser um sistema social, se tal recorrência de interações passa a ser um mecanismo mediante o qual estes seres realizam sua autopoiesis. A recorrência de interações cooperativas é sempre expressão do operar dos seres vivos participantes em um domínio de acoplamento estrutural recíproco e durará tanto quanto este dure.
Conosco, os seres humanos, esse acoplamento estrutural recíproco se dá, espontaneamente, em muitas circunstâncias diferentes, como expressão de nosso modo de ser biológico atual, e aparece para um observador como uma pegajosidade biológica que pode ser descrita como o prazer da companhia, ou como amor, em quaisquer de suas formas. Sem esta pegajosidade biológica, sem o prazer da companhia, sem amor, não há socialização humana, e toda sociedade na qual se perde o amor se desintegra. A conservação dessa pegajosidade biológica, que, na sua origem associal, é o fundamento do social, na minha opinião foi, na evolução dos homínidas, o fator básico na demarcação da deriva filogênica humana que resultou na linguagem e, através dela, na cooperação e não na competição, na inteligência tipicamente humana” (Maturana, 1985a: 80) (n. g.).
Quinto. Toda realidade humana é social. Se toda realidade humana é social, então só somos indivíduos, pessoas, enquanto somos seres sociais na linguagem. “Nossa individualidade como seres humanos é social e, ao ser humanamente social, é lingüisticamente lingüística, quer dizer, está imersa em nosso ser na linguagem. Isso é constitutivo do humano. Somos concebidos, crescemos, vivemos e morremos imersos nas coordenações condutuais que envolvem as palavras e a reflexão lingüística e, por isso, na possibilidade da autoconsciência e, às vezes, na autoconsciência. Em suma, existimos como seres humanos somente num mundo social que, definido por nosso ser na linguagem, é o meio no qual nos realizamos como seres vivos e no qual conservamos nossa organização e adaptação” (Maturana, 1985a: 80).
Sexto. Mudança individual implica mudança social. Se a conduta individual de seus membros é o que define um sistema social como uma sociedade particular, então as características de uma sociedade somente podem mudar se a conduta (comportamento) de seus membros muda. Todavia, “as características dos membros de um sistema social podem mudar de maneira não conservadora, se estes membros têm interações fora do sistema. Isso ocorre no domínio humano de duas maneiras: a) concretamente, em virtude de encontros fora da dinâmica do sistema social (em viagens, por exemplo); e b) em virtude da reflexão na linguagem.
Os encontros fora do sistema social dependem da mobilidade de seus membros e da abertura destes membros para admitir tais encontros. A reflexão na linguagem ocorre cada vez que nossas interações nos levam a descrever nossas circunstâncias ao desencadear em nós uma mudança de domínio que define uma perspectiva de observação. Isso ocorre principalmente de duas maneiras: a) por falha no fluir de nossos atos em algum domínio de nosso mundo cultural, ao interromper-se nosso acoplamento estrutural nesse domínio; e b) porque o operar no amor (a simpatia, o afeto, a preferência) nos leva a olhar as circunstâncias nas quais se encontra o ser ou objeto amado e a valorá-las a partir desse amor (preferência). A primeira maneira de passar à reflexão na linguagem não é necessariamente social; a segunda, o amor, em quaisquer de suas formas, envolve as fontes mesmas da socialização humana e, portanto, o fundamento do humano.
O significativo da reflexão na linguagem é que ela nos leva a contemplar nosso mundo e o mundo do outro e a fazer da descrição de nossas circunstâncias e das circunstâncias do outro parte do meio em que conservamos identidade e adaptação. A reflexão na linguagem nos leva a ver o mundo em que vivemos e a aceitá-lo ou rechaçá-lo conscientemente” (Maturana, 1985a: 81).
Sétimo. A busca da estabilidade de um sistema social humano. “A estabilidade de um sistema social depende de que não se interfira com seu caráter conservador. Por isso, em todo sistema social humano a busca da estabilidade social leva: a) à estabilidade pela consciência social, ao ampliar as instâncias reflexivas que permitem a cada membro uma conduta social que envolva como legítima a presença do outro como um igual; ou b) à estabilidade na rigidez condutual, ao limitar, por um lado, os encontros fora do sistema social e ao reduzir a conversação e a crítica e, por outro lado, mediante a negação do amor, ao substituir a ética (a aceitação do outro) pela hierarquia e pela moralidade (a imposição de normas condutuais), ao institucionalizar relações contingentes de subordinação humana” (Maturana, 1985a: 81).
Oitavo. Identidade individual conservada socialmente. “Em cada sistema social se conserva a identidade da classe de seres vivos que o integram. Assim, se os componentes de um sistema social são formigas, a identidade que se conserva na dinâmica estrutural do sistema social é a identidade-formiga. Se os seres vivos componentes de um sistema social são médicos, a identidade conservada nos seres vivos componentes desse sistema social durante sua dinâmica estrutural é a de médico. Por isso, nossa individualidade como seres humanos envolve a conservação de nossa vida na conservação de tantas identidades quantas forem as sociedades a que pertençamos. Por isso mesmo, podemos deixar de pertencer a um ou outro sistema social sem necessariamente nos desintegrarmos como seres humanos” (Maturana, 1985a: 82).
a) “a organização descrita acima é necessária e suficiente para caracterizar um sistema social; e
b) um sistema particular, definido por essa organização, gera todos os fenômenos próprios de um sistema social em um marco de conduta (comportamento) especificado pelo tipo de seres vivos que o integram” (Idem).
Maturana está se referindo aqui apenas a uma classe de sistemas: “Esta classe... é o resultado inevitável das interações recorrentes que se dão entre seres vivos. E cada vez que [tais interações] se dão com alguma permanência temos esse tipo de sistemas”, os quais ele denomina de “sistemas sociais, porquanto os fenômenos que neles se dão são indistinguíveis, em sua forma e modo de geração, dos fenômenos que observamos nos sistemas que chamamos de sistemas sociais no âmbito humano” (Maturana, 1985a: 76) (n. i.) (g. a.).
Daí decorrem seis implicações, de aplicabilidade universal – válidas, portanto, para qualquer tipo de sistema social:
Um sistema social conserva a vida dos seus membros. “É constitutivo de um sistema social o fato de que seus componentes sejam seres vivos...” Um sistema social só se constitui se estes seres vivos, no processo de integrá-lo, conservarem nele sua organização e adaptação. “Por isso, qualquer tentativa de caracterizar um sistema social de uma maneira que desconheça que a conservação da vida de seus componentes é condição constitutiva do seu operar está equivocada e especifica um sistema que não gera os fenômenos próprios de um sistema social. Assim, por exemplo, um conjunto humano que não incorpora a conservação da vida de seus membros como parte de sua definição operatória como sistema, não constitui um sistema social” (Maturana, 1985a: 76).
Um sistema social é caracterizado pelo comportamento dos seus membros. “Cada sistema social particular, quer dizer, cada sociedade se distingue pelas características da rede de interações que realiza. Assim, por exemplo, uma comunidade religiosa, um clube, uma colmeia de abelhas, na medida em que são sistemas sociais, são sociedades distintas, porque seus membros realizam condutas distintas ao integrá-las (os comportamentos adequados a cada uma delas são diferentes). Para ser membro de uma sociedade, basta realizar as condutas que definem seus membros” (Maturana, 1985a: 76-7).
Não existem membros supérfluos num sistema social. “Na medida em que um sistema social é constituído por seres vivos, são todos e cada um dos seres vivos que o integram os que de fato o constituem com o operar de suas propriedades. Portanto... não há componentes supérfluos em um sistema social; se um componente se perde, o sistema social muda. Todo sistema social está exposto à mudança em virtude da morte de seus componentes. Além disso, como as propriedades e características de cada ser vivo estão determinadas por sua estrutura, na medida em que as estruturas dos seres vivos que integram um sistema social mudam, mudam igualmente suas propriedades e o sistema social que geram com suas condutas também muda” (Maturana, 1985a: 77). Maturana considera um sistema cuja estrutura muda enquanto conserva sua organização e sua correspondência com o meio como um sistema em deriva estrutural. Em geral, a deriva é uma mudança de posição de um sistema que conserva sua forma e sua correspondência com o meio em que se produz a mudança.
As propriedades dos membros de um sistema social são selecionadas pelos próprios membros desse sistema. “Na medida em que um sistema social é o meio no qual seus membros se realizam como seres vivos e o meio no qual conservam sua organização e adaptação, um sistema social opera necessariamente como seletor da mudança estrutural de seus componentes e, portanto, de suas propriedades. Com efeito, na medida em que são os componentes de um sistema social os que de fato o constituem e realizam com sua conduta, são os componentes de um sistema social os que, com sua conduta, de fato selecionam as propriedades dos componentes do mesmo sistema social que eles constituem. Toda sociedade é conservadora de sua organização como tal e das características dos componentes que a geram” (Maturana, 1985a: 77).
Um sistema social é mudado por seus membros. “Em geral, os componentes de um sistema social podem participar de outras interações, além daquelas em que necessariamente devem participar ao integrá-lo, quer dizer, podem participar de interações fora do sistema social que constituem. Mas se, como resultado de tais interações, a estrutura dos componentes de um sistema social muda, de modo que sua maneira de integrá-lo muda, sem destruir sua organização, a estrutura do sistema também muda. Para um observador, este sistema aparece como o mesmo sistema, porém constituído como uma rede diferente de condutas. O mesmo pode ocorrer com a incorporação de novos membros em um sistema social, com uma história prévia de interações independente dele” (Maturana, 1985a: 77).
Todo sistema social está em contínua mudança estrutural. “Ainda que todo sistema social seja constitutivamente conservador, todo sistema social está também em contínua mudança estrutural, devido: a) à perda de membros por morte ou migração; b) à incorporação de novos membros com propriedades adicionais àquelas necessárias para sua incorporação, diferentes das de outros membros; e c) a mudanças nas propriedades de seus membros, que surgem de mudanças estruturais não desencadeadas (selecionadas) por suas interações dentro do sistema social que integram, em virtude de interações realizadas fora do sistema ou como resultado de sua própria dinâmica interna” (Maturana, 1985a: 77-8). Maturana conclui: “o devir histórico de qualquer sociedade é sempre o resultado destes dois processos: conservação e variação” (Idem).
Evidentemente, estamos aqui diante de uma profunda reconceituação de sistema social que altera, também profundamente, a nossa compreensão das sociedades humanas. Das seis proposições acima, universalmente válidas para qualquer sistema social, Maturana vai inferir dez teoremas aplicáveis às sociedades humanas.
Primeiro. A natureza constitutivamente conservadora dos sistemas sociais. Se os sistemas sociais são constitutivamente conservadores, então isso também ocorre no domínio social humano. “Os membros de qualquer sociedade humana realizam essa sociedade com sua conduta e, com ela, continuamente selecionam em seus membros, antigos e novos, essas mesmas condutas (comportamentos). Assim, por exemplo, em um clube, as condutas de seus membros definem o clube, eliminando dele todos aqueles que não têm condutas apropriadas e confirmando como membros todos aqueles que as têm, sendo que condutas apropriadas são aquelas com as quais, eles mesmos, os membros do clube, definem o clube. O mesmo ocorre nas famílias, nas comunidades religiosas... enfim, em qualquer sociedade humana” (Maturana, 1985a: 78).
Segundo. Os seres humanos podem ser membros de vários sistemas sociais. Se, no processo de viver, os seres humanos realizam, em lugar e/ou tempo oportunos, as condutas próprias de vários sistemas sociais, então eles podem ser membros desses vários sistemas sociais simultaneamente ou sucessivamente. “Assim, podemos ser, imbricadamente e sem contradições, membros de uma família, de uma comunidade religiosa, de um clube, de uma nação, por meio das distintas dimensões do nosso viver. Porém, se, ao realizar as distintas condutas próprias de distintos sistemas sociais, não o fazemos envolvendo de fato nossas vidas, mas apenas pretendendo fazê-lo, não somos realmente membros desses sistemas sociais e estaremos apenas imersos em suas respectivas tramas condutuais (comportamentais) até que, ao ser descobertos, sejamos expulsos como hipócritas e parasitas” (Maturana, 1985a: 78).
Terceiro. A linguagem é o mecanismo fundamental de interação no operar dos sistemas sociais humanos. “A linguagem, como característica do ser humano, surge com o humano no suceder social que lhe dá origem... A conduta primária de coordenação condutual (comportamental) na ação sobre o mundo, gerada e aprendida ao longo da vida dos membros de um sistema social qualquer, como resultado de suas interações nesse sistema, é descrita como conduta lingüística por um observador que vê cada elemento condutual como uma palavra descritora do mundo ao assinalar objetos do mundo. Mas nesse operar social primário não há objetos para os membros do sistema social, pois eles só se movem na coordenação condutual da ação que tiveram que adquirir (aprender) ao fazer-se membros dele. No domínio social humano, e como resultado das interações que têm lugar entre os membros de uma sociedade humana, há linguagem quando há recursividade lingüística, quer dizer, quando um observador vê coordenação condutual sobre coordenação condutual ” (Maturana, 1985a: 79).
Para Maturana, o fenômeno da linguagem tem lugar quando um observador distingue, nas interações de dois ou mais organismos, coordenações condutuais de coordenações condutuais consensuais. Quer dizer, a linguagem surge quando há recursão (recorrência) no âmbito das coordenações condutuais. Disso se infere que a linguagem surge e se dá como fenômeno social, e que as palavras são coordenações de ação, não entes abstratos ou referências a entes independentes.
É preciso dizer o que Maturana entende por recursão (traduzido precariamente aqui por “recorrência”): a recursão (recorrência) ocorre cada vez que uma operação se aplica sobre as conseqüências de sua aplicação. Assim, por exemplo, quando se extrai a raiz quadrada de um número e, em seguida, se extrai a raiz quadrada do resultado, há uma recursão (recorrência). Já que o exemplo fornecido por Maturana foi matemático, talvez se devesse usar – no lugar de recursão (ou de recorrência) – o conceito de ‘iteração’ (literalmente, repetição), que designa o processo pelo qual uma função opera repetidamente sobre si mesma, o qual tem sido usado na modelagem matemática de processos em que ocorrem laços de realimentação (de auto-reforço), como parece ser o caso.
Cada vez que um observador distingue interações recorrentes (iteradas) entre organismos como coordenações de ações num meio, o que o observador distingue são coordenações condutuais. Cada vez que o observador distingue coordenações condutuais que surgem como resultado de uma história particular de interações, o observador distingue coordenações condutuais consensuais. O termo consensual, portanto, indica que a forma das coordenações condutuais é função de uma história particular.
Maturana supõe que a linguagem tenha surgido, evolutivamente, em algum momento há mais de três milhões de anos na história da linhagem humana. “Há linguagem quando os participantes de um domínio lingüístico usam palavras (coordenação condutual primária) ao coordenar suas ações sobre as distintas circunstâncias que suas coordenações condutuais primárias configuram – as quais aparecem, assim, pela primeira vez, assinaladas como unidades independentes, isto é, como objetos. Disso resulta, por um lado, a produção de um mundo de ações e objetos que só têm existência e significado no domínio social em que surgem e, por outro lado, a produção da auto-observação, que nos leva a distinguir como objetos a nós mesmos e a nossas circunstâncias, na reflexão que constitui a autoconsciência como fenômeno que também tem existência e sentido somente no domínio social” (Maturana, 1985a: 79). Para Maturana, portanto, consciência e eu são fenômenos sociais na linguagem, quer dizer, consciência e eu são distinções que não têm sentido fora do social.
Cabe esclarecer, todavia, o que Maturana entende por objeto. Com o surgimento da linguagem, surgem os objetos como recursões (iterações) de coordenações condutuais consensuais, nas quais a recorrência nas coordenações condutuais oculta as condutas (comportamentos ou ações) consensuais coordenadas. Na gramática, os objetos aparecem como substantivos; são distinções estáticas de ações.
Quarto. O papel fundante da cooperação. Se não houver recorrência de interações cooperativas, então não pode existir nenhum sistema social. “Para que um sistema social exista deve ocorrer a recorrência das interações que resultam na coordenação condutual de seus membros; quer dizer, deve ocorrer a recorrência de interações cooperativas. De fato, se há recorrência de interações cooperativas entre dois ou mais seres vivos, o resultado pode ser um sistema social, se tal recorrência de interações passa a ser um mecanismo mediante o qual estes seres realizam sua autopoiesis. A recorrência de interações cooperativas é sempre expressão do operar dos seres vivos participantes em um domínio de acoplamento estrutural recíproco e durará tanto quanto este dure.
Conosco, os seres humanos, esse acoplamento estrutural recíproco se dá, espontaneamente, em muitas circunstâncias diferentes, como expressão de nosso modo de ser biológico atual, e aparece para um observador como uma pegajosidade biológica que pode ser descrita como o prazer da companhia, ou como amor, em quaisquer de suas formas. Sem esta pegajosidade biológica, sem o prazer da companhia, sem amor, não há socialização humana, e toda sociedade na qual se perde o amor se desintegra. A conservação dessa pegajosidade biológica, que, na sua origem associal, é o fundamento do social, na minha opinião foi, na evolução dos homínidas, o fator básico na demarcação da deriva filogênica humana que resultou na linguagem e, através dela, na cooperação e não na competição, na inteligência tipicamente humana” (Maturana, 1985a: 80) (n. g.).
Quinto. Toda realidade humana é social. Se toda realidade humana é social, então só somos indivíduos, pessoas, enquanto somos seres sociais na linguagem. “Nossa individualidade como seres humanos é social e, ao ser humanamente social, é lingüisticamente lingüística, quer dizer, está imersa em nosso ser na linguagem. Isso é constitutivo do humano. Somos concebidos, crescemos, vivemos e morremos imersos nas coordenações condutuais que envolvem as palavras e a reflexão lingüística e, por isso, na possibilidade da autoconsciência e, às vezes, na autoconsciência. Em suma, existimos como seres humanos somente num mundo social que, definido por nosso ser na linguagem, é o meio no qual nos realizamos como seres vivos e no qual conservamos nossa organização e adaptação” (Maturana, 1985a: 80).
Sexto. Mudança individual implica mudança social. Se a conduta individual de seus membros é o que define um sistema social como uma sociedade particular, então as características de uma sociedade somente podem mudar se a conduta (comportamento) de seus membros muda. Todavia, “as características dos membros de um sistema social podem mudar de maneira não conservadora, se estes membros têm interações fora do sistema. Isso ocorre no domínio humano de duas maneiras: a) concretamente, em virtude de encontros fora da dinâmica do sistema social (em viagens, por exemplo); e b) em virtude da reflexão na linguagem.
Os encontros fora do sistema social dependem da mobilidade de seus membros e da abertura destes membros para admitir tais encontros. A reflexão na linguagem ocorre cada vez que nossas interações nos levam a descrever nossas circunstâncias ao desencadear em nós uma mudança de domínio que define uma perspectiva de observação. Isso ocorre principalmente de duas maneiras: a) por falha no fluir de nossos atos em algum domínio de nosso mundo cultural, ao interromper-se nosso acoplamento estrutural nesse domínio; e b) porque o operar no amor (a simpatia, o afeto, a preferência) nos leva a olhar as circunstâncias nas quais se encontra o ser ou objeto amado e a valorá-las a partir desse amor (preferência). A primeira maneira de passar à reflexão na linguagem não é necessariamente social; a segunda, o amor, em quaisquer de suas formas, envolve as fontes mesmas da socialização humana e, portanto, o fundamento do humano.
O significativo da reflexão na linguagem é que ela nos leva a contemplar nosso mundo e o mundo do outro e a fazer da descrição de nossas circunstâncias e das circunstâncias do outro parte do meio em que conservamos identidade e adaptação. A reflexão na linguagem nos leva a ver o mundo em que vivemos e a aceitá-lo ou rechaçá-lo conscientemente” (Maturana, 1985a: 81).
Sétimo. A busca da estabilidade de um sistema social humano. “A estabilidade de um sistema social depende de que não se interfira com seu caráter conservador. Por isso, em todo sistema social humano a busca da estabilidade social leva: a) à estabilidade pela consciência social, ao ampliar as instâncias reflexivas que permitem a cada membro uma conduta social que envolva como legítima a presença do outro como um igual; ou b) à estabilidade na rigidez condutual, ao limitar, por um lado, os encontros fora do sistema social e ao reduzir a conversação e a crítica e, por outro lado, mediante a negação do amor, ao substituir a ética (a aceitação do outro) pela hierarquia e pela moralidade (a imposição de normas condutuais), ao institucionalizar relações contingentes de subordinação humana” (Maturana, 1985a: 81).
Oitavo. Identidade individual conservada socialmente. “Em cada sistema social se conserva a identidade da classe de seres vivos que o integram. Assim, se os componentes de um sistema social são formigas, a identidade que se conserva na dinâmica estrutural do sistema social é a identidade-formiga. Se os seres vivos componentes de um sistema social são médicos, a identidade conservada nos seres vivos componentes desse sistema social durante sua dinâmica estrutural é a de médico. Por isso, nossa individualidade como seres humanos envolve a conservação de nossa vida na conservação de tantas identidades quantas forem as sociedades a que pertençamos. Por isso mesmo, podemos deixar de pertencer a um ou outro sistema social sem necessariamente nos desintegrarmos como seres humanos” (Maturana, 1985a: 82).
Nono. O amor como emoção fundante das relações sociais. “Na medida em que o fenômeno social humano se funda no amor, relações sociais que dependem do [ou do modo de] ver o outro que o amor envolve, como as de justiça, respeito, honestidade e colaboração, são próprias do operar de um sistema social humano como sistema biológico e, portanto, pertencem ao quefazer humano quotidiano. Por isso, a negação dessas relações desvirtua o fenômeno social humano ao negar seus fundamentos (o amor), e toda sociedade que faz tal coisa se desintegra, mesmo que seus antigos membros continuem interagindo, em virtude da impossibilidade de se separarem fisicamente” (Maturana, 1985a: 82) (n. i.).
Décimo. Relações de trabalho não são relações sociais. “As relações de trabalho são acordos de produção nos quais o central é o produto, não os seres humanos que (o) produzem. Por isso, as relações de trabalho não são relações sociais. Isso é o que justifica a negação do humano nas relações de trabalho: ser humano em uma relação de trabalho é uma impertinência. O fato das relações de trabalho não serem relações sociais é o que torna possível a substituição dos trabalhadores humanos por autômatos e o uso humano no desconhecimento do humano, que os trabalhadores ignorantes dessa situação vivenciam como exploração” (Maturana, 1985a: 82).
Os cinco pressupostos, as seis implicações e as dez conseqüências expostos acima contêm, segundo Maturana, “o fundamental de tudo o que se pode dizer sobre a biologia do fenômeno social”. Sobre esse material, no entanto, ele ainda faz seis reflexões, à guisa de comentários, que esclarecem o conteúdo, um tanto complexo e obscuro, de suas proposições.
O primeiro comentário é sobre o fato de que “o ser humano é constitutivamente social. Não existe o humano fora do social. O genético não determina o humano, somente funda o humanizável. Para ser humano, é preciso crescer humano entre humanos. Ainda que pareça óbvio, esquece-se disso ao se esquecer que se é humano somente da maneira de ser humano das sociedades a que se pertence. Se pertencemos a sociedades que validam, com a conduta quotidiana de seus membros, o respeito aos mais velhos, a honestidade consigo mesmo, a seriedade na ação e a veracidade no falar, esse será nosso modo de ser humanos e de nossos filhos. Pelo contrário, se pertencemos a uma sociedade cujos membros validam, com sua conduta quotidiana, a hipocrisia, o abuso, a mentira e o auto-engano, esse será nosso modo de ser humanos e de nossos filhos” (Maturana, 1985a: 82) (n. g.).
O segundo comentário é sobre o caráter conservador de todo sistema social, em virtude do qual “toda inovação social encontra, ao menos inicialmente, resistência e, às vezes, de maneira extrema. Por isso, uma inovação social se impõe somente por sedução ou porque novos membros não possam evitar crescer nela. Por último, como toda sociedade se realiza na conduta dos indivíduos que a compõem, há mudança social genuína em uma sociedade somente se há uma mudança condutual genuína de seus membros. Toda mudança social é uma mudança cultural” (Maturana, 1985a: 83).
O terceiro comentário é sobre o amor. “Todo sistema social humano se funda no amor, em quaisquer de suas formas, que une seus membros; e o amor é a abertura de um espaço de existência para o outro como ser humano junto a si. Se não há amor, não há socialização genuína e os seres humanos se separam. Uma sociedade na qual o amor entre seus membros acaba se desintegra. Somente a coerção de um ou outro tipo, quer dizer, o risco de perder a vida, pode obrigar um ser humano, que não é um parasita, a sujeitar-se à hipocrisia de conduzir-se como membro de um sistema social sem amor. Ser social envolve sempre ir com o outro, e só se vai livremente com quem se ama” (Maturana, 1985a: 83).
O quarto comentário é sobre a cooperação e a competição. “A conduta social está fundada na cooperação, não na competição. A competição é constitutivamente anti-social, porque, como fenômeno, consiste na negação do outro. Não existe a “competição saudável”, porque a negação do outro implica a negação de si mesmo, ao pretender que se valida o que se nega. A competição é contrária à seriedade na ação, pois o que compete não vive no que faz, antes se aliena na negação do outro” (Maturana, 1985a: 83).
O quinto comentário é sobre a linguagem. “O central do fenômeno social humano é que este fenômeno se dá na linguagem e o central da linguagem é que somente nela se dão a reflexão e a autoconsciência. A linguagem, em um sentido antropológico, é, portanto, a origem do humano propriamente dito, ao invés de sua queda e libertação. A linguagem tira a biologia humana do âmbito da pura estrutura material e a inclui no âmbito da estrutura conceitual, ao fazer possível um mundo de descrições no qual o ser humano deve conservar sua organização e adaptação. Assim, a linguagem confere ao ser humano sua dimensão espiritual na reflexão, tanto da autoconsciência quanto da consciência do outro” (Maturana, 1985a: 83).
O sexto e último comentário é, ainda, sobre a linguagem. “Porém, a linguagem é também a queda do ser humano, ao permitir as cegueiras frente ao ser biológico que trazem consigo as ideologias [prescritivas, ou] descritivas do que deve ser. Quem não teve a experiência de dilaceramento interno ao negar-se a compartilhar ou a ajudar a quem necessita de ajuda? O fato de que, cada vez que nos negamos a ajudar ou a compartilhar, recorramos a uma explicação para justificar nossa recusa, prova, por um lado, que toda recusa a ajudar ou compartilhar violenta nosso ser biológico básico e, por outro, que nossas ideologias justificativas nos cegam frente a nós mesmos e aos demais” (Maturana, 1985a: 84) (n. i.).
Feitas essas reflexões, a conclusão de Humberto Maturana é a seguinte: “Tudo o que foi dito mostra que não existe, biologicamente falando, contradição entre o social e o individual. Ao contrário, o social e o individual são, de fato, inseparáveis. A contradição que a humanidade vive neste domínio é de origem cultural” (Maturana, 1985a: 84). Para Maturana, existe tal contradição cultural em virtude de duas razões principais: a justificação ideológica da competição pela sobrevivência, que se deve à sobrecarga ecológica geradora de escassez (ou de previsível ameaça de escassez) de recursos de subsistência para todos; e “a exclusão, que toda sociedade faz, dos que não satisfazem às condições de pertencimento que a definem, e que justificamos ideologicamente, apesar de sabermos, por íntima reflexão, que todos os seres humanos, como tais, somos iguais” (Idem). De sorte que “os problemas sociais são sempre problemas culturais, porque têm a ver com os mundos que construímos na convivência” (Idem-idem: 85).
2 - O "LINGUAGEAR", O "EMOCIONAR" E O "CONVERSAR"
No quadro do arcabouço teórico apresentado acima, concluído em meados dos anos 80, Humberto Maturana vai desenvolver, até o final da mesma década, as idéias fulcrais com as quais, ao meu ver, pode-se construir uma teoria da cooperação capaz de servir de base para uma teoria do capital social. Essas idéias fulcrais são três: a) o linguagear; b) o emocionar; e c) o conversar.
Comecemos com um resumo no qual Maturana estabelece relações entre essas três idéias, examinando, em primeiro lugar, como ele trata as relações entre a linguagem e o conversar. “Estamos acostumados a considerar a linguagem como um sistema de comunicação simbólica, no qual os símbolos são entidades abstratas que nos permitem movermo-nos num espaço de discursos, flutuante sobre a concreção do viver, ainda que o representem. Eu sustento que tal visão surge de uma falta de compreensão da linguagem como fenômeno biológico. Com efeito, a linguagem, como fenômeno que nos envolve como seres vivos e, portanto, como um fenômeno biológico que se origina em nossa história evolutiva, consiste em um operar recorrente, em coordenações de coordenações condutuais consensuais. Disso resulta que as palavras são nodos de redes de coordenação de ações, não representantes abstratos de uma realidade independente de nosso quefazer. É por isso que as palavras não são inócuas e não dá no mesmo que usemos uma ou outra numa situação determinada. As palavras que usamos não revelam apenas nosso pensar, mas projetam o curso do nosso quefazer. Ocorre que o domínio em que se dão as ações que as palavras coordenam não é sempre aparente em um discurso e há que esperar a sucessão do viver para sabê-lo. Porém, não é isso que quero destacar, e, sim, o fato de que o conteúdo do conversar em uma comunidade não é inócuo para essa comunidade, porque arrasta o seu quefazer... Os seres humanos, somos o que conversamos: esse é o modo como a cultura e a história se encarnam em nosso presente. [Por exemplo] o conversar as conversações que constituem a democracia é o que constitui a democracia. De fato, nossa única possibilidade de viver o mundo que queremos viver é imergindo nas conversações que o constituem como uma prática social quotidiana...” (Maturana, 1988f: 105-6) (n. i.).
Em segundo lugar, vejamos como Maturana trata as relações entre as emoções e o conversar. “Vivemos uma cultura que desvalorizou as emoções em função de uma supervalorização da razão, num desejo de dizer que nós, os humanos, nos diferenciamos dos outros animais porque somos seres racionais. Porém, o fato é que somos mamíferos e, como tais, somos animais que vivem na emoção. As emoções não são obscurecimentos do entendimento, não são restrições à razão; as emoções são dinâmicas corporais que especificam domínios de ação nos quais nos movemos. Uma mudança de emoção implica uma mudança de domínio de ação. Nada acontece conosco, nada fazemos que não esteja definido como uma ação de uma certa classe, acompanhada de uma emoção que a torna possível... [‘Se queremos entender as ações humanas, não devemos olhar o movimento ou o ato como uma operação particular, mas sim a emoção que o possibilita. Um choque entre duas pessoas será vivido como agressão ou acidente, segundo a emoção na qual se encontram os participantes. Não é o encontro o que define o que ocorre, mas a emoção que o constitui como um ato.’] Disso resulta que o viver humano se dá em um contínuo entrelaçamento de emoções e linguagem, como um fluir de coordenações consensuais de ações e emoções. Eu denomino conversar este entrelaçamento de emoção e linguagem. Os seres humanos vivemos em distintas redes de conversações que se entrecruzam em sua realização em nossa individualidade corporal. (Maturana, 1988f: 107) (n. i.) (g. a + n. g.).
Vamos examinar, agora em separado, os três conceitos.
O linguagear. Linguagear é um neologismo que faz referência ao ato de estar na linguagem, sem associar tal ato à fala, como ocorre quando empregamos a palavra ‘falar’. “A linguagem, como fenômeno biológico, consiste em um fluir em interações recorrentes que constituem um sistema de coordenações condutuais (comportamentais) consensuais de coordenações condutuais consensuais. Disso resulta que a linguagem, como processo, não tem lugar no corpo (sistema nervoso) dos participantes, mas no espaço de coordenações condutuais consensuais que se constitui no fluir de seus encontros corporais recorrentes.
Nenhuma conduta, nenhum gesto ou postura corporal particular, constitui, por si só, um elemento da linguagem – mas só é parte dela na medida em que pertence a um fluir recorrente de coordenações condutuais consensuais. Assim, palavras são somente aqueles gestos, sons, condutas ou posturas corporais que participam como elementos consensuais no fluir recorrente de coordenações condutuais consensuais que constitui a linguagem. As palavras são, portanto, nodos de coordenações condutuais consensuais; por isso, o que um observador faz ao conferir significado aos gestos, sons, condutas ou posturas corporais, que ele ou ela distingue como sendo palavras, é conotar ou referir-se às relações de coordenações condutuais consensuais nas quais vê que tais gestos, sons, condutas ou posturas corporais participam.
Nestas circunstâncias, o que um observador vê como conteúdo de um linguagear particular está no curso que seguem as coordenações condutuais consensuais que tal linguagem envolve, em relação com o momento na história de interações no qual elas têm lugar, e que, por sua vez, é função do curso que seguem essas mesmas coordenações condutuais no momento de realizar-se. Ao mesmo tempo, como nos encontros corporais, os participantes na linguagem desencadeiam, um sobre o outro, mudanças estruturais que modulam suas respectivas dinâmicas estruturais, estas mudanças estruturais seguem cursos contingentes ao curso que seguem as interações recorrentes dos participantes no linguagear... Em suma: o que fazemos em nosso linguagear tem conseqüências em nossa dinâmica corporal e o que acontece em nossa dinâmica corporal tem conseqüências em nosso linguagear” (Maturana, 1988a: 88).
Em segundo lugar, vejamos como Maturana trata as relações entre as emoções e o conversar. “Vivemos uma cultura que desvalorizou as emoções em função de uma supervalorização da razão, num desejo de dizer que nós, os humanos, nos diferenciamos dos outros animais porque somos seres racionais. Porém, o fato é que somos mamíferos e, como tais, somos animais que vivem na emoção. As emoções não são obscurecimentos do entendimento, não são restrições à razão; as emoções são dinâmicas corporais que especificam domínios de ação nos quais nos movemos. Uma mudança de emoção implica uma mudança de domínio de ação. Nada acontece conosco, nada fazemos que não esteja definido como uma ação de uma certa classe, acompanhada de uma emoção que a torna possível... [‘Se queremos entender as ações humanas, não devemos olhar o movimento ou o ato como uma operação particular, mas sim a emoção que o possibilita. Um choque entre duas pessoas será vivido como agressão ou acidente, segundo a emoção na qual se encontram os participantes. Não é o encontro o que define o que ocorre, mas a emoção que o constitui como um ato.’] Disso resulta que o viver humano se dá em um contínuo entrelaçamento de emoções e linguagem, como um fluir de coordenações consensuais de ações e emoções. Eu denomino conversar este entrelaçamento de emoção e linguagem. Os seres humanos vivemos em distintas redes de conversações que se entrecruzam em sua realização em nossa individualidade corporal. (Maturana, 1988f: 107) (n. i.) (g. a + n. g.).
Vamos examinar, agora em separado, os três conceitos.
O linguagear. Linguagear é um neologismo que faz referência ao ato de estar na linguagem, sem associar tal ato à fala, como ocorre quando empregamos a palavra ‘falar’. “A linguagem, como fenômeno biológico, consiste em um fluir em interações recorrentes que constituem um sistema de coordenações condutuais (comportamentais) consensuais de coordenações condutuais consensuais. Disso resulta que a linguagem, como processo, não tem lugar no corpo (sistema nervoso) dos participantes, mas no espaço de coordenações condutuais consensuais que se constitui no fluir de seus encontros corporais recorrentes.
Nenhuma conduta, nenhum gesto ou postura corporal particular, constitui, por si só, um elemento da linguagem – mas só é parte dela na medida em que pertence a um fluir recorrente de coordenações condutuais consensuais. Assim, palavras são somente aqueles gestos, sons, condutas ou posturas corporais que participam como elementos consensuais no fluir recorrente de coordenações condutuais consensuais que constitui a linguagem. As palavras são, portanto, nodos de coordenações condutuais consensuais; por isso, o que um observador faz ao conferir significado aos gestos, sons, condutas ou posturas corporais, que ele ou ela distingue como sendo palavras, é conotar ou referir-se às relações de coordenações condutuais consensuais nas quais vê que tais gestos, sons, condutas ou posturas corporais participam.
Nestas circunstâncias, o que um observador vê como conteúdo de um linguagear particular está no curso que seguem as coordenações condutuais consensuais que tal linguagem envolve, em relação com o momento na história de interações no qual elas têm lugar, e que, por sua vez, é função do curso que seguem essas mesmas coordenações condutuais no momento de realizar-se. Ao mesmo tempo, como nos encontros corporais, os participantes na linguagem desencadeiam, um sobre o outro, mudanças estruturais que modulam suas respectivas dinâmicas estruturais, estas mudanças estruturais seguem cursos contingentes ao curso que seguem as interações recorrentes dos participantes no linguagear... Em suma: o que fazemos em nosso linguagear tem conseqüências em nossa dinâmica corporal e o que acontece em nossa dinâmica corporal tem conseqüências em nosso linguagear” (Maturana, 1988a: 88).
O emocionar. Maturana sustenta que “o que distinguimos como emoções, o que conotamos com a palavra emoções são disposições corporais que especificam, em cada instante, o domínio de ações em que se encontra um animal (humano ou não), e que o emocionar, como um fluir de uma emoção para outra, é um fluir de um domínio de ações para outro. A barata que cruza lentamente a cozinha e começa a correr precipitadamente para um lugar escuro quando entramos, acendendo a luz e fazendo barulho, teve uma mudança emocional, e no seu fluir emocional passou de um domínio de ações para outro. De fato, reconhecemos isso também na vida quotidiana, ao dizer que a barata passou da tranqüilidade ao medo. Neste caso, ao usar os mesmos termos que usamos para referirmo-nos ao emocionar humano, não fazemos uma antropomorfização do que se passa com a barata, senão que reconhecemos que o emocionar é um aspecto fundamental do operar animal que nós também exibimos.
Dizer que o emocional tem a ver com o animal que há em nós não é, certamente, uma novidade; o que eu agrego, entretanto, é que a existência humana se realiza na linguagem e no racional, a partir do emocional. Com efeito, ao propor que se reconheça que as emoções são disposições corporais que especificam domínios de ações, e que as distintas emoções se distinguem precisamente porque especificam distintos domínios de ações, proponho que se reconheça que, por esse motivo, todas as ações humanas, seja qual for o espaço operacional em que ocorram, fundam-se no emocional porque ocorrem num espaço de ações especificado a partir de uma emoção” (Maturana, 1988a: 90).
Maturana vai então mostrar que “o mesmo ocorre com o raciocinar. Todo sistema racional e, com efeito, todo raciocinar se dá como um operar nas coerências da linguagem, a partir de um conjunto primário de coordenações de ações tomado como coleção de premissas fundamentais aceitas ou adotadas, explícita ou implicitamente, a priori. Porém, ocorre que todo aceitar a priori se dá a partir de um domínio emocional particular no qual queremos o que aceitamos, e aceitamos o que queremos, sem outro fundamento senão o nosso desejo, que se constitui e se expressa em nosso aceitar. Em outras palavras, todo sistema racional tem fundamento emocional, e é por isso que nenhum argumento racional pode convencer ninguém que não esteja, já de partida, convencido a aceitar as premissas a priori que o constituem” (Maturana, 1988a: 90).
É fundamental compreender que “não é a razão que nos leva à ação, e, sim, a emoção. Cada vez que escutamos alguém dizendo que fulano ou sicrana é racional e não emocional, podemos escutar o substrato de emoção que está por trás dessa afirmação, em termos de um desejo de ser ou de obter. Cada vez que afirmamos ter uma dificuldade no fazer, de fato temos uma dificuldade no querer que fica oculta pela argumentação sobre o fazer. Falamos como se fosse óbvio que certas coisas devessem ocorrer em nossa convivência com os outros, porém não as queremos e é por isso que não ocorrem. Ou dizemos que queremos uma coisa, porém não a queremos e queremos outra, e fazemos, via de regra, o que queremos, dizendo que não se pode fazer aquilo [que dizemos que queremos mas não queremos]. Há certa sabedoria consuetudinária tradicional quando se diz: “pelos seus atos os conhecereis”. Porém, o que é que conheceremos observando as ações de outrem? Conheceremos suas emoções como fundamentos que constituem suas ações; não conheceremos o que poderíamos chamar de seus sentimentos, senão o espaço de existência efetiva no qual esse ser humano se move” (Maturana, 1988c: 23-4) (n. i.).
Essa distinção entre emoção e sentimento é fundamental na teoria de Maturana, que é – não se deve esquecer – uma teoria biológica do fenômeno social. E, para ele, a emoção é biológica, não psicológica como o sentimento.
Essa distinção entre emoção e sentimento é fundamental na teoria de Maturana, que é – não se deve esquecer – uma teoria biológica do fenômeno social. E, para ele, a emoção é biológica, não psicológica como o sentimento.
O conversar. “O menino (ou a menina), em sua concepção, vive imerso no linguagear e no emocionar da mãe e de outros adultos e crianças que formam o seu entorno de convivência durante a gravidez e depois do nascimento. O resultado é que, como embrião, feto, criança ou adulto, o ser humano adquire seu emocionar em seu viver congruente com o emocionar dos outros seres, humanos ou não, com os quais convive.
Habitualmente, diríamos que o menino (ou a menina) aprende a emocionar-se, de uma ou de outra maneira, como ser humano, com o emocionar-se dos adultos e crianças (e outros animais) que formam seu entorno humano e não humano; ele (ou ela) se alegrará, se enternecerá, se envergonhará, se aborrecerá..., seguindo as contingências das circunstâncias em que estes [outros seres do seu entorno] se alegram, se enternecem, se envergonham, se aborrecem... etc. Como este processo se dá em cada novo ser humano, junto com a constituição e expansão dos domínios de coordenações condutuais consensuais em que participa... linguagear e emocionar se entrelaçam em um modular-se mútuo como simples resultado da convivência com outros [seres humanos]... Ao movermo-nos na linguagem em interações com outros [seres humanos], nossas emoções mudam segundo um emocionar que é função da história de interações que vivemos, e na qual surgiu nosso emocionar como um aspecto de nossa convivência com outros [seres humanos], fora e dentro do linguagear. Ao mesmo tempo, ao fluir nosso emocionar em um curso que resultou de nossa história de convivência dentro e fora da linguagem, mudamos de domínio de ações e, portanto, muda o curso de nosso linguagear e de nosso raciocinar. A este fluir entrelaçado de linguagear e emocionar chamo conversar, e chamo de conversação ao fluir do conversar em uma rede particular de linguagear e emocionar” (Maturana, 1988a: 92) (n. i.) (g. a. + n. g.).
Habitualmente, diríamos que o menino (ou a menina) aprende a emocionar-se, de uma ou de outra maneira, como ser humano, com o emocionar-se dos adultos e crianças (e outros animais) que formam seu entorno humano e não humano; ele (ou ela) se alegrará, se enternecerá, se envergonhará, se aborrecerá..., seguindo as contingências das circunstâncias em que estes [outros seres do seu entorno] se alegram, se enternecem, se envergonham, se aborrecem... etc. Como este processo se dá em cada novo ser humano, junto com a constituição e expansão dos domínios de coordenações condutuais consensuais em que participa... linguagear e emocionar se entrelaçam em um modular-se mútuo como simples resultado da convivência com outros [seres humanos]... Ao movermo-nos na linguagem em interações com outros [seres humanos], nossas emoções mudam segundo um emocionar que é função da história de interações que vivemos, e na qual surgiu nosso emocionar como um aspecto de nossa convivência com outros [seres humanos], fora e dentro do linguagear. Ao mesmo tempo, ao fluir nosso emocionar em um curso que resultou de nossa história de convivência dentro e fora da linguagem, mudamos de domínio de ações e, portanto, muda o curso de nosso linguagear e de nosso raciocinar. A este fluir entrelaçado de linguagear e emocionar chamo conversar, e chamo de conversação ao fluir do conversar em uma rede particular de linguagear e emocionar” (Maturana, 1988a: 92) (n. i.) (g. a. + n. g.).
3 - UM NOVO OLHAR SOBRE A EVOLUÇÃO HUMANA
Há aqui um outro olhar teórico sobre o processo evolutivo, desenvolvido a partir do que Humberto Maturana (e Jorge Mpodozis) chamaram de “fenótipo ontogênico”.
“O humano surge, na história evolutiva da linhagem hominídea a que pertencemos, ao surgir a linguagem. No âmbito biológico, uma espécie é uma linhagem, ou sistema de linhagens, constituída como tal ao conservar, de maneira transgeracional na história reprodutiva de uma série de organismos, um modo de viver particular. Dado que todo ser vivo existe como um sistema dinâmico em contínua mudança estrutural, o modo de viver que define uma espécie, uma linhagem ou um sistema de linhagens, ocorre como uma configuração dinâmica de relações entre o ser vivo e o meio que se estende em sua ontogenia, desde a concepção até a morte. A tal modo de viver, ou configuração dinâmica de relações ontogênicas entre ser vivo e meio, que, ao conservar-se transgeracionalmente em uma sucessão reprodutiva de organismos, constitui e define a identidade de um sistema de linhagens, Jorge Mpodozis e eu chamamos fenótipo ontogênico. O fenótipo ontogênico não está determinado geneticamente, pois, como modo de viver que se desenvolve na ontogenia ou história individual de cada organismo, é um fenótipo, e, como tal, ocorre nessa história individual, necessariamente, como um presente que é gerado em cada instante em um processo epigenético.
O que a constituição genética de um organismo determina no momento de sua concepção é um âmbito de ontogenias possíveis, das quais sua história de interações com o meio realizará uma, em um processo de epigênesis. Devido a isso, ao constituir-se um sistema de linhagens, o genótipo, ou constituição genética dos organismos que o constituem, fica solto e pode variar, desde que tais variações não interfiram na conservação do fenótipo ontogênico que define o sistema de linhagens. Por isso mesmo, se, em um momento da história reprodutiva que constitui uma linhagem, muda o fenótipo ontogênico que se conserva, dali para frente muda a identidade da linhagem ou surge uma nova linhagem como uma nova forma ou espécie de organismos paralela à anterior.
Nessas circunstâncias, para compreender o que ocorre na história da mudança evolutiva de qualquer classe de organismos, é necessário encontrar o fenótipo ontogênico que nela se conserva e em torno do qual se produzem tais mudanças. Assim, para compreender a história evolutiva que dá origem ao humano, é necessário, primeiro, olhar o modo de vida que, ao conservar-se no sistema de linhagens hominídeo, torna possível a origem da linguagem e, depois, olhar o novo modo de vida que surge com a linguagem, o qual, ao conservar-se, estabelece a linhagem particular a que nós, os seres humanos modernos, pertencemos” (Maturana, 1988b: 103-4).
Desta visão, Maturana vai destacar quatro aspectos:
“a) A origem da linguagem, como um domínio de coordenações condutuais consensuais, exige uma história de encontros recorrentes, baseados na aceitação mútua, suficientemente intensa e prolongada.
b) O que sabemos de nossos ancestrais, que viveram na África há 3,5 milhões de anos, indica que tinham um modo de viver – em pequenos grupos formados por alguns poucos adultos, jovens e crianças – centrado na coleta, no compartilhamento dos alimentos, na colaboração entre machos e fêmeas na criação dos filhos, numa convivência sensual e numa sexualidade de encontro frontal.
“O humano surge, na história evolutiva da linhagem hominídea a que pertencemos, ao surgir a linguagem. No âmbito biológico, uma espécie é uma linhagem, ou sistema de linhagens, constituída como tal ao conservar, de maneira transgeracional na história reprodutiva de uma série de organismos, um modo de viver particular. Dado que todo ser vivo existe como um sistema dinâmico em contínua mudança estrutural, o modo de viver que define uma espécie, uma linhagem ou um sistema de linhagens, ocorre como uma configuração dinâmica de relações entre o ser vivo e o meio que se estende em sua ontogenia, desde a concepção até a morte. A tal modo de viver, ou configuração dinâmica de relações ontogênicas entre ser vivo e meio, que, ao conservar-se transgeracionalmente em uma sucessão reprodutiva de organismos, constitui e define a identidade de um sistema de linhagens, Jorge Mpodozis e eu chamamos fenótipo ontogênico. O fenótipo ontogênico não está determinado geneticamente, pois, como modo de viver que se desenvolve na ontogenia ou história individual de cada organismo, é um fenótipo, e, como tal, ocorre nessa história individual, necessariamente, como um presente que é gerado em cada instante em um processo epigenético.
O que a constituição genética de um organismo determina no momento de sua concepção é um âmbito de ontogenias possíveis, das quais sua história de interações com o meio realizará uma, em um processo de epigênesis. Devido a isso, ao constituir-se um sistema de linhagens, o genótipo, ou constituição genética dos organismos que o constituem, fica solto e pode variar, desde que tais variações não interfiram na conservação do fenótipo ontogênico que define o sistema de linhagens. Por isso mesmo, se, em um momento da história reprodutiva que constitui uma linhagem, muda o fenótipo ontogênico que se conserva, dali para frente muda a identidade da linhagem ou surge uma nova linhagem como uma nova forma ou espécie de organismos paralela à anterior.
Nessas circunstâncias, para compreender o que ocorre na história da mudança evolutiva de qualquer classe de organismos, é necessário encontrar o fenótipo ontogênico que nela se conserva e em torno do qual se produzem tais mudanças. Assim, para compreender a história evolutiva que dá origem ao humano, é necessário, primeiro, olhar o modo de vida que, ao conservar-se no sistema de linhagens hominídeo, torna possível a origem da linguagem e, depois, olhar o novo modo de vida que surge com a linguagem, o qual, ao conservar-se, estabelece a linhagem particular a que nós, os seres humanos modernos, pertencemos” (Maturana, 1988b: 103-4).
Desta visão, Maturana vai destacar quatro aspectos:
“a) A origem da linguagem, como um domínio de coordenações condutuais consensuais, exige uma história de encontros recorrentes, baseados na aceitação mútua, suficientemente intensa e prolongada.
b) O que sabemos de nossos ancestrais, que viveram na África há 3,5 milhões de anos, indica que tinham um modo de viver – em pequenos grupos formados por alguns poucos adultos, jovens e crianças – centrado na coleta, no compartilhamento dos alimentos, na colaboração entre machos e fêmeas na criação dos filhos, numa convivência sensual e numa sexualidade de encontro frontal.
c) O modo de vida indicado em b, o qual ainda conservamos no fundamental, oferece tudo o que é exigido: primeiro, para a origem da linguagem; segundo, para que, no surgimento da linguagem, se constitua o conversar como entrecruzamento do linguagear e do emocionar; e, terceiro, para que, com a inclusão do conversar como outro elemento a ser conservado no modo de viver hominídeo, se constitua o fenótipo ontogênico particular que define o sistema de linhagens a que nós, seres humanos modernos, pertencemos.
d) O fato de que os chimpanzés e os gorilas atuais, cujo cérebro tem dimensões comparáveis às de nossos ancestrais, possam ser incorporados na linguagem mediante a convivência com eles [dos humanos com eles!] em AMESLAN (American Sign Language), sugere que o cérebro de nossos ancestrais de 3 milhões de anos atrás deve também ter sido adequado para isso” (Maturana, 1988b: 104-5) (n. i.).
“O que diferencia a linhagem hominídea de outras linhagens de primatas é um modo de vida no qual o compartilhar alimentos – com tudo o que isso implica em termos de proximidade, aceitação mútua e coordenações de ações operadas nos atos de passar coisas de uns para outros – joga um papel central. É o modo de vida hominídeo o que torna possível a linguagem, e é o amor, como a emoção que constitui o espaço de ações nos quais se dá o modo de viver hominídeo, a emoção central na história evolutiva que nos dá origem” (Maturana, 1988b: 105).
Ora, prossegue Maturana, “o modo de viver propriamente humano se constitui, como já disse, quando se agrega o conversar ao modo de viver hominídeo e começa a conservar-se o entrecruzamento do linguagear com o emocionar como parte do fenótipo ontogênico que nos define. Ao surgir o modo de vida propriamente humano, o conversar como ação pertence ao âmbito emocional no qual surge a linguagem como modo de estar nas coordenações de ações que ocorrem na intimidade da convivência sensual e sexual” (Maturana, 1988b: 105). Sinais de que isso é assim aparecem: a) nas imagens táteis que usamos para referirmo-nos ao que sentimos nas vozes da fala: dizemos que uma voz pode ser suave, acariciante ou dura; b) nas mudanças fisiológicas, hormonais, por exemplo, desencadeadas com a fala; e c) no prazer que temos em conversar e em nos movermos no linguagear” (Idem).
4 - O QUE FUNDA O HUMANO
Para concluir (dizendo quase tudo de novo, porém de maneira mais compreensível), vejamos como Maturana, a partir dessas três idéias fulcrais – o linguagear, o emocionar e o conversar –, define o que funda o humano.
“Em geral, pensamos no humano, no ser humano, como um ser racional, e freqüentemente declaramos em nosso discurso que o que distingue o ser humano dos outros animais é o seu ser racional... Ao nos declararmos seres racionais, vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, não vemos o entrelaçamento quotidiano entre razão e emoção que constitui nosso viver humano e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional. As emoções não são o que correntemente chamamos de sentimentos. Do ponto de vista biológico, o que conotamos quando falamos de emoções são disposições corporais dinâmicas que definem os distintos domínios de ação em que nos movemos. Quando alguém muda de emoção, muda de domínio de ação. Na verdade, todos nós sabemos disso na praxis da vida quotidiana, porém o negamos, porque insistimos em dizer que o que define nossas condutas como humanas é seu ser racional. Ao mesmo tempo, todos sabemos que, quando estamos em uma certa emoção, existem coisas que podemos fazer e coisas que não podemos fazer, e aceitamos como válidos certos argumentos que não aceitaríamos sob outra emoção... Todo sistema racional se constitui no operar com premissas aceitas a priori a partir de certa emoção.
Biologicamente, as emoções são disposições corporais que determinam ou especificam domínios de ações... são um fenômeno próprio do reino animal. Todos os animais as temos... Falamos como se o racional tivesse um fundamento transcendental que lhe dá validade universal, independentemente do que fazemos como seres vivos. Não é assim. Todo sistema racional se funda em premissas fundamentais aceitas a priori, aceitas porque sim, aceitas porque alguém gosta delas, aceitas porque alguém, simplesmente, as aceita a partir de suas preferências... Todo argumento sem erro lógico é, obviamente, racional para aquele que aceita as premissas fundamentais nas quais este argumento se funda. O humano se constitui no entrelaçamento do emocional com o racional. O racional é constituído pelas coerências operacionais dos sistemas argumentativos que construímos na linguagem para defender ou justificar nossas ações. Habitualmente, vivemos nossos argumentos racionais sem fazer referência às emoções em que se fundam, porque não sabemos que eles e todas as nossas ações têm um fundamento emocional, e cremos que tal condição seria uma limitação ao nosso ser racional” (Maturana, 1988c: 14-19) (n. g.).
Para explicar “por que o fundamento emocional de nossa razão não é uma limitação... [Maturana vai ter que fazer referência] à origem do humano e à origem da linguagem. Para dar conta da origem do humano, temos de começar fazendo referência ao que ocorria há 3,5 milhões de anos. Sabemos, por registros fósseis, que, há 3,5 milhões de anos, havia primatas bípedes, os quais, como nós, possuíam ombros e caminhar ereto, porém tinham um cérebro muito menor (aproximadamente um terço do cérebro humano atual). Sabemos, também, que esses primatas viviam em grupos pequenos, famílias ampliadas de dez a doze indivíduos que incluíam bebês, crianças e adultos. Examinando sua dentadura, sabemos que eram animais comedores de grãos, portanto, coletores e, presumivelmente, caçadores apenas ocasionais. Tudo isso indica que esses nossos antecessores compartilhavam entre si os alimentos e estavam imersos em uma sensualidade recorrente, com machos que participavam da criação dos filhos, desenvolvendo um modo de vida que funda uma linhagem que chega até o presente. Durante a trajetória dessa linhagem, o cérebro cresceu de 430 cc a 1450 cc ou 1500 cc” (Maturana, 1988c: 19) (n. i.).
Após tal introdução, Maturana vai tentar responder a pergunta que aqui parece ser central: como surgiu o humano propriamente dito nesse processo e qual a relação entre isso e o crescimento do cérebro? “Diz-se, freqüentemente, que a história da transformação do cérebro humano tem a ver com o uso de instrumentos, principalmente com o desenvolvimento da mão em sua fabricação. Não compartilho dessa opinião, pois a mão já estava desenvolvida nesses nossos antecessores. Me parece mais factível que a destreza e sensibilidade manual que nos caracteriza tenha surgido na arte de descascar as pequenas sementes das gramíneas da savana, e na participação da mão na carícia, em virtude da sua capacidade de amoldar-se a qualquer superfície do corpo de maneira suave e sensual. Sustento, outrossim, que a história do cérebro humano está relacionada principalmente com a linguagem. Quando um gato brinca com uma bola, usa as mesmas coordenações musculares que nós... O macaco [é capaz de pegar algo que lhe cai das mãos] com a mesma ou com maior elegância do que nós, ainda que sua mão não possa se abrir totalmente como a nossa. O peculiar do humano não está na manipulação, mas na linguagem e no seu entrelaçamento com o emocionar” (Maturana, 1988c: 20) (n. i.).
Surge, porém, uma outra pergunta: “se a humanização do cérebro primata tem a ver com a linguagem, com o que tem a ver a origem da linguagem? Habitualmente, dizemos que a linguagem é um sistema simbólico de comunicação. Eu sustento que tal afirmação nos impede de ver que os símbolos são secundários na linguagem. Se vocês estivessem olhando pela janela duas pessoas sem ouvir os sons que emitem, o que deveriam observar para concluir que elas estão conversando? Quando se pode dizer que alguém está na [ou imerso no processo de] linguagem? A resposta é simples e todos a sabemos: alguém diz que duas pessoas estão conversando quando vê que o curso de suas interações constitui-se em um fluir de coordenações de ações. Se vocês não vêem coordenações de ações ou, segundo o jargão moderno, se vocês não vêem comunicação, nunca falarão de linguagem. A linguagem tem a ver com coordenações de ações: não com qualquer coordenação de ação, mas com coordenações de ações consensuais. Ademais, a linguagem é um operar em coordenações consensuais de coordenações de ações consensuais” (Maturana, 1988c: 20) (n. i.).
Ora, para Maturana, “o que define uma espécie... [não é uma configuração genética que se conserva através da história reprodutiva de uma população ou de um sistema de populações, mas] é um modo de vida, uma configuração de relações mutantes entre organismo e meio, que começa com a concepção do organismo e termina com sua morte, e que se conserva geração após geração como um fenótipo ontogênico, como um modo de viver em um meio, e não como uma configuração genética particular. A mudança evolutiva se produz, segundo tal ponto de vista, quando se constitui uma nova linhagem ao mudar o modo de vida que se conserva em uma sucessão reprodutiva [e não em virtude da mudança na configuração genética conservada por uma população ou sistema de populações]. Por isso, na medida em que a mudança evolutiva se dá através da conservação de novos fenótipos ontogênicos, o central no fenômeno evolutivo está na mudança do modo de vida e em sua conservação na constituição de uma linhagem de organismos congruentes com sua circunstância e não em contradição com esta última” (Maturana, 1988c: 20) (n. i.) (n. g.).
O humano foi, portanto, fundado por um novo modo de vida que surgiu com o linguagear, a partir “das coordenações condutuais de compartilhar alimentos, passando de uns para outros no espaço de interações recorrentes da sensualidade personalizada, que trazem consigo o encontro sexual frontal e a participação dos machos na criação dos filhos, já presente em nossos ancestrais há 3,5 milhões de anos. Em outras palavras, digo que é na conservação de um modo de vida onde há o compartilhar alimentos, no prazer da convivência, do encontro e do reencontro sensual recorrente, no qual os machos e as fêmeas se encontram na convivência em torno da criação dos filhos, onde pôde dar-se – e de fato se deu – o modo de vida em coordenações consensuais de coordenações de ações consensuais que constituem a linguagem. Enfim, penso também que o modo de vida no qual as coordenações condutuais consensuais de coordenações condutuais consensuais surgem na intimidade da convivência, na sensualidade e no compartilhar, dando origem à linguagem, pertence à história da nossa linhagem há pelo menos três milhões de anos. E digo isto levando em consideração o grau de envolvimento anatômico e funcional que nosso cérebro tem com a linguagem oral” (Maturana, 1988c: 22).
Após tal introdução, Maturana vai tentar responder a pergunta que aqui parece ser central: como surgiu o humano propriamente dito nesse processo e qual a relação entre isso e o crescimento do cérebro? “Diz-se, freqüentemente, que a história da transformação do cérebro humano tem a ver com o uso de instrumentos, principalmente com o desenvolvimento da mão em sua fabricação. Não compartilho dessa opinião, pois a mão já estava desenvolvida nesses nossos antecessores. Me parece mais factível que a destreza e sensibilidade manual que nos caracteriza tenha surgido na arte de descascar as pequenas sementes das gramíneas da savana, e na participação da mão na carícia, em virtude da sua capacidade de amoldar-se a qualquer superfície do corpo de maneira suave e sensual. Sustento, outrossim, que a história do cérebro humano está relacionada principalmente com a linguagem. Quando um gato brinca com uma bola, usa as mesmas coordenações musculares que nós... O macaco [é capaz de pegar algo que lhe cai das mãos] com a mesma ou com maior elegância do que nós, ainda que sua mão não possa se abrir totalmente como a nossa. O peculiar do humano não está na manipulação, mas na linguagem e no seu entrelaçamento com o emocionar” (Maturana, 1988c: 20) (n. i.).
Surge, porém, uma outra pergunta: “se a humanização do cérebro primata tem a ver com a linguagem, com o que tem a ver a origem da linguagem? Habitualmente, dizemos que a linguagem é um sistema simbólico de comunicação. Eu sustento que tal afirmação nos impede de ver que os símbolos são secundários na linguagem. Se vocês estivessem olhando pela janela duas pessoas sem ouvir os sons que emitem, o que deveriam observar para concluir que elas estão conversando? Quando se pode dizer que alguém está na [ou imerso no processo de] linguagem? A resposta é simples e todos a sabemos: alguém diz que duas pessoas estão conversando quando vê que o curso de suas interações constitui-se em um fluir de coordenações de ações. Se vocês não vêem coordenações de ações ou, segundo o jargão moderno, se vocês não vêem comunicação, nunca falarão de linguagem. A linguagem tem a ver com coordenações de ações: não com qualquer coordenação de ação, mas com coordenações de ações consensuais. Ademais, a linguagem é um operar em coordenações consensuais de coordenações de ações consensuais” (Maturana, 1988c: 20) (n. i.).
Ora, para Maturana, “o que define uma espécie... [não é uma configuração genética que se conserva através da história reprodutiva de uma população ou de um sistema de populações, mas] é um modo de vida, uma configuração de relações mutantes entre organismo e meio, que começa com a concepção do organismo e termina com sua morte, e que se conserva geração após geração como um fenótipo ontogênico, como um modo de viver em um meio, e não como uma configuração genética particular. A mudança evolutiva se produz, segundo tal ponto de vista, quando se constitui uma nova linhagem ao mudar o modo de vida que se conserva em uma sucessão reprodutiva [e não em virtude da mudança na configuração genética conservada por uma população ou sistema de populações]. Por isso, na medida em que a mudança evolutiva se dá através da conservação de novos fenótipos ontogênicos, o central no fenômeno evolutivo está na mudança do modo de vida e em sua conservação na constituição de uma linhagem de organismos congruentes com sua circunstância e não em contradição com esta última” (Maturana, 1988c: 20) (n. i.) (n. g.).
O humano foi, portanto, fundado por um novo modo de vida que surgiu com o linguagear, a partir “das coordenações condutuais de compartilhar alimentos, passando de uns para outros no espaço de interações recorrentes da sensualidade personalizada, que trazem consigo o encontro sexual frontal e a participação dos machos na criação dos filhos, já presente em nossos ancestrais há 3,5 milhões de anos. Em outras palavras, digo que é na conservação de um modo de vida onde há o compartilhar alimentos, no prazer da convivência, do encontro e do reencontro sensual recorrente, no qual os machos e as fêmeas se encontram na convivência em torno da criação dos filhos, onde pôde dar-se – e de fato se deu – o modo de vida em coordenações consensuais de coordenações de ações consensuais que constituem a linguagem. Enfim, penso também que o modo de vida no qual as coordenações condutuais consensuais de coordenações condutuais consensuais surgem na intimidade da convivência, na sensualidade e no compartilhar, dando origem à linguagem, pertence à história da nossa linhagem há pelo menos três milhões de anos. E digo isto levando em consideração o grau de envolvimento anatômico e funcional que nosso cérebro tem com a linguagem oral” (Maturana, 1988c: 22).
Um resumo do resumo seria o seguinte:
a) “O humano surge, na história evolutiva a que pertencemos, ao surgir a linguagem,
b) porém, se constitui, de fato, como tal, na conservação de um modo de viver particular centrado:
b1) no compartilhamento dos alimentos,
b2) na colaboração de machos e fêmeas na criação dos filhos,
b3) no encontro sensual individualizado recorrente,
b4) e no conversar.
c) Por isso, todo quefazer humano se dá na linguagem,
d) e o que, no viver dos seres humanos, não se dá na linguagem, não é quefazer humano;
e) ao mesmo tempo, como todo quefazer humano se dá a partir de uma emoção, nada humano ocorre fora do entrelaçamento do linguagear com o emocionar
f) e, portanto, o humano se vive sempre em um conversar.
g) Finalmente, o emocionar, em cuja conservação se constitui o humano, ao surgir a linguagem, centra-se:
g1) no prazer da convivência,
g2) na aceitação do outro junto a si,
g3) quer dizer, no amor, que é a emoção que constitui o espaço de ações no qual aceitamos o outro na proximidade da convivência.
O fato de que amor seja a emoção que funda, na origem do humano, o gozo do conversar que nos caracteriza, faz com que tanto nosso bem-estar quanto nosso sofrimento dependam de nosso conversar” (Maturana, 1988a: 94-5).
a) “O humano surge, na história evolutiva a que pertencemos, ao surgir a linguagem,
b) porém, se constitui, de fato, como tal, na conservação de um modo de viver particular centrado:
b1) no compartilhamento dos alimentos,
b2) na colaboração de machos e fêmeas na criação dos filhos,
b3) no encontro sensual individualizado recorrente,
b4) e no conversar.
c) Por isso, todo quefazer humano se dá na linguagem,
d) e o que, no viver dos seres humanos, não se dá na linguagem, não é quefazer humano;
e) ao mesmo tempo, como todo quefazer humano se dá a partir de uma emoção, nada humano ocorre fora do entrelaçamento do linguagear com o emocionar
f) e, portanto, o humano se vive sempre em um conversar.
g) Finalmente, o emocionar, em cuja conservação se constitui o humano, ao surgir a linguagem, centra-se:
g1) no prazer da convivência,
g2) na aceitação do outro junto a si,
g3) quer dizer, no amor, que é a emoção que constitui o espaço de ações no qual aceitamos o outro na proximidade da convivência.
O fato de que amor seja a emoção que funda, na origem do humano, o gozo do conversar que nos caracteriza, faz com que tanto nosso bem-estar quanto nosso sofrimento dependam de nosso conversar” (Maturana, 1988a: 94-5).
5 - REDES DE CONVERSAÇÕES
Para Maturana, todo quefazer humano se dá em algum tipo de conversação. Esta afirmativa tem conseqüências importantes para uma teoria biológica do fenômeno social, dentre as quais vale destacar a existência das chamadas “redes de conversações”.
“Dizer que todo quefazer humano se dá no conversar é dizer que todo quefazer humano, seja qual for o domínio de experiência no qual tenha lugar – desde o domínio que constitui o espaço físico até o que constitui o espaço místico – se dá como um fluir de coordenações condutuais consensuais de coordenações condutuais consensuais, em um entrelaçamento consensual com um fluir emocional que também pode ser consensual. Por isso, os distintos quefazeres humanos se distinguem tanto pelo domínio de experiência em que têm lugar as ações que os constituem como pelo fluir emocional que envolvem, e, de fato, se dão na convivência como distintas redes de conversações” (Maturana, 1988a: 95). Mas “existem tantos tipos de conversações quantos são os modos recorrentes de fluir no entrelaçamento do emocionar e do linguagear que se dão nos distintos aspectos da vida quotidiana... As conversações, portanto, envolvem um emocionar consensual entrelaçado com o linguagear no qual comparecem classes de emoções não presentes no emocionar mamífero fora da recorrência das coordenações condutuais consensuais do linguagear” (Idem).
Maturana destaca, como alguns desses tipos de conversações, a cultura e os sistemas de convivência. “Uma cultura é uma rede de conversações que definem um modo de viver, um modo de estar orientado no existir, tanto no âmbito humano quanto no não humano, e envolve um modo de atuar, um modo de emocionar e um modo de crescer no atuar e no emocionar. Cresce-se numa cultura vivendo nela como um tipo particular de ser humano na rede de conversações que a define. Por isso, os membros de uma cultura vivem a rede de conversações que a constituem, sem esforço, como um substrato natural e espontâneo, como algo dado para alguém apenas em virtude do seu modo de ser, independente dos sistemas sociais e não sociais a que possa pertencer” (Maturana, 1988a: 96-7).
Por sua vez, “os distintos sistemas de convivência que constituímos na vida quotidiana se diferenciam pela emoção que especifica o espaço básico de ações nas quais se dão nossas relações com os outros e com nós mesmos. Assim, temos:
i) Sistemas sociais, que são sistemas de convivência constituídos sob a emoção do amor, que é a emoção que constitui o espaço de ações de aceitação do outro na convivência. Nesse sentido, sistemas de convivência fundados em uma emoção distinta do amor não são sistemas sociais;
ii) Sistemas de trabalho, que são sistemas de convivência constituídos sob a emoção do compromisso, que é a emoção que constitui o espaço de ações de aceitação de um acordo para a realização de uma tarefa. Nesse sentido, os sistemas de relações de trabalho não são sistemas sociais;
iii) Sistemas hierárquicos ou de poder, que são sistemas de convivência constituídos sob a emoção que constitui as ações de auto-negação e de negação do outro, na aceitação da própria subordinação ou da sujeição do outro, numa dinâmica de ordem e obediência. Nesse sentido, os sistemas hierárquicos não são sistemas sociais.
i) Sistemas sociais, que são sistemas de convivência constituídos sob a emoção do amor, que é a emoção que constitui o espaço de ações de aceitação do outro na convivência. Nesse sentido, sistemas de convivência fundados em uma emoção distinta do amor não são sistemas sociais;
ii) Sistemas de trabalho, que são sistemas de convivência constituídos sob a emoção do compromisso, que é a emoção que constitui o espaço de ações de aceitação de um acordo para a realização de uma tarefa. Nesse sentido, os sistemas de relações de trabalho não são sistemas sociais;
iii) Sistemas hierárquicos ou de poder, que são sistemas de convivência constituídos sob a emoção que constitui as ações de auto-negação e de negação do outro, na aceitação da própria subordinação ou da sujeição do outro, numa dinâmica de ordem e obediência. Nesse sentido, os sistemas hierárquicos não são sistemas sociais.
Existem, naturalmente, outros sistemas de convivência, fundados em outras emoções, porém o que nos interessa destacar agora é o fato de que cada um desses sistemas se constitui como uma rede particular de conversações, que configuram um modo particular de emocionar, a partir de uma emoção definidora básica” (Maturana, 1988a: 97).
6 - O QUE FUNDA O SOCIAL
Estabelecido o que funda o humano, Maturana vai tentar estabelecer o que funda o social.
“A emoção fundamental que torna possível a história de hominização é o amor. Sei que pode parecer chocante o que digo, porém insisto: é o amor. Não estou falando do ponto de vista do cristianismo. Se vocês me perdoam, direi que, desgraçadamente, a palavra amor foi desvirtuada, a emoção que esta palavra conota foi desvitalizada, de tanto se dizer que o amor é algo especial e difícil. O amor é constitutivo da vida humana, porém não é nada especial. O amor é o fundamento do social, porém nem toda convivência é social. O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas onde se realiza a operacionalidade da aceitação do outro como um legítimo outro na convivência – e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social. Por isso, digo que o amor é a emoção que funda o social; sem aceitação do outro na convivência, não há fenômeno social.
Em outras palavras, digo que somente são sociais as relações que se fundam na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência e que tal aceitação é o que constitui uma conduta de respeito. Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas, onde haja aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações de ações, não podemos esperar que surja a linguagem. Se não há interações na aceitação mútua, produz-se separação ou destruição. Em outras palavras, se na história dos seres vivos existe alguma coisa que não pode surgir na competição, essa coisa é a linguagem.
Repito o que já disse: a linguagem, como domínio de coordenações condutuais consensuais de coordenações condutuais consensuais, somente pode surgir em uma história de coordenações condutuais consensuais – e isso exige uma convivência constituída na operacionalidade da aceitação mútua, num espaço de ações que envolve constantemente coordenações condutuais consensuais nessa operacionalidade. Como também já disse, isso deve ter ocorrido na história evolutiva de nossos ancestrais; o que sabemos sobre o seu modo de vida mais provável, há três milhões de anos, revela que já existia naquela época tal modo de vida.
Ademais, este modo de vida ainda se conserva em nós. Com efeito, ainda somos animais coletores, e isso fica evidente tanto no nosso comportamento nos supermercados [como nos sentimos à vontade recolhendo os produtos nas gôndolas e prateleitas] quanto na nossa dependência vital da agricultura; ainda somos animais compartilhadores, e isso fica evidente na criança que tira a comida da boca para dá-la a mãe, e no que sentimos quando alguém nos pede uma esmola; ainda somos animais que vivem na coordenação consensual de ações, e isso notamos pela facilidade com que nos dispomos a participar de atividades cooperativas, quando não temos um argumento racional para recusar; ainda somos do tipo de animais cujos machos participam no cuidado das crias, coisa que pode ser comprovada pela disposição dos homens para cuidar dos filhos, quando não têm argumentos racionais para desvalorizar tal atividade; ainda somos animais que vivemos em grupos pequenos, o que é evidente em nosso sentido de pertencer a uma família; ainda somos animais sensuais, que vivemos espontaneamente o tocar-se e acariciar-se, quando não pertencemos a uma cultura que nega a legitimidade do contato corporal; e, por último, ainda somos animais que vivemos a sensualidade no encontro personalizado com o outro, o que fica evidente pela nossa queixa quando isso não ocorre.
Porém, sobretudo, no presente da história evolutiva a que pertencemos, e que começou com a origem da linguagem – quando o estar na linguagem se fez parte do modo de vida que, ao conservar-se, constituiu a linhagem Homo a que pertencemos – somos animais dependentes do amor. O amor é a emoção central na história evolutiva humana desde seu início, e toda essa história se dá como uma história na qual a conservação de um modo de vida no qual o amor, a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, é uma condição necessária para o desenvolvimento físico, comportamental, psíquico, social e espiritual normal da criança, assim como para a conservação da saúde física, comportamental, psíquica, social e espiritual do adulto.
Num sentido estrito, os seres humanos nos originamos no amor e somos dependentes dele. Na vida humana, a maior parte do sofrimento vem da negação do amor: os seres humanos somos filhos do amor... Não estou falando como cristão, não me importa o que disse o Papa, não estou imitando o que ele disse, estou falando a partir da biologia. Estou falando a partir da compreensão das condições que tornam possível uma história de interações recorrentes suficientemente íntima para que possa ocorrer a ‘recursividade’ nas coordenações condutuais consensuais que constitui a linguagem” (Maturana, 1988c: 24-6) (n. i.).
Quando Maturana fala que “o amor é o fundamento do social”, ele está se referindo àquela “pegajosidade biológica” (cuja origem é associal) que funda o social, porquanto se manifesta como abertura e conservação de espaços de convivência que englobam vários indivíduos numa mesma proximidade, a partir do prazer da companhia, da simpatia, do afeto, da preferência, mas, fundamentalmente, pela aceitação do outro. “A emoção que funda o social, como a emoção que constitui o domínio de ações no qual o outro é aceito como um legítimo outro na convivência, é o amor” (Maturana, 1988c: 27). Destarte, “relações humanas que não estejam fundadas no amor... não são relações sociais. Portanto, nem todas as relações humanas são sociais, tampouco o são todas as comunidades humanas, porque nem todas se fundam na operacionalidade da aceitação mútua. Distintas emoções especificam distintos domínios de ações. Conseqüentemente, comunidades humanas fundadas em outras emoções, distintas do amor, estarão constituídas em outros domínios de ações que não serão o da colaboração e do compartilhamento em coordenações de ações que implicam a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, e não serão comunidades sociais” (Idem: 27-8).
Para Maturana, portanto, “os seres humanos não somos todo o tempo sociais; o somos somente na dinâmica das relações de aceitação mútua. Sem ações de aceitação mútua não somos sociais. Com efeito, na biologia humana, o social é tão fundamental que aparece a cada instante e por todas as partes” (Maturana, 1988d: 77).
Como vimos, nem todas as relações de convivência são relações sociais. Relações de trabalho, por exemplo, não são relações sociais. “É justamente porque as relações de trabalho não são relações sociais que se requer leis que as regulem. No marco das relações sociais não cabem os sistemas legais, porque as relações humanas se dão na aceitação mútua e, portanto, no respeito mútuo” (Maturana, 1988d: 78).
Da mesma forma, relações hierárquicas também não são relações sociais, porquanto “se fundam na negação mútua implícita, na exigência de obediência e entrega de poder que trazem consigo. O poder surge com a obediência e a obediência constitui o poder como relações de mútua negação. As relações hierárquicas são relações fundadas na sobrevalorização e na desvalorização que constituem, respectivamente, o poder e a obediência e, portanto, não são relações sociais... O poder não é algo que um ou outro indivíduo tem, é uma relação na qual se concede algo a alguém através da obediência – e a obediência se constitui quando alguém faz algo que não quer fazer, cumprindo uma ordem. O que obedece nega a si mesmo, porque, para salvar ou obter algo, faz o que não quer a pedido do outro. O que obedece atua com contrariedade, e na contrariedade nega o outro, porque o rejeita e não o aceita como um legítimo outro na convivência. Ao mesmo tempo, o que obedece nega-se a si mesmo ao obedecer, dizendo: ‘não quero fazer isso, porém, se não obedeço, me expulsam ou me castigam, e não quero que me expulsem ou castiguem’. Porém, o que manda também nega o outro e se nega a si mesmo ao não encontrar-se com o outro como um legítimo outro na convivência. Nega-se a si mesmo porque justifica a legitimidade da obediência do outro em sua sobrevalorização, e nega o outro porque justifica a legitimidade da obediência com a [ou a partir da suposição da] inferioridade do outro.
De sorte que as relações de poder e de obediência, as relações hierárquicas, não são relações sociais. Um exército não é um sistema social... [ainda que] entre os membros de um exército possam efetivar-se relações sociais” (Maturana, 1988d: 76-7) (n. i.).
Para concluir, Maturana diz que “os fenômenos sociais têm a ver com a biologia e que a aceitação do outro não é um fenômeno cultural. Além disso,” – prossegue – “sustento que o cultural, no social, tem a ver com a delimitação ou restrição da aceitação do outro. É na justificação racional dos modos de convivência onde inventamos os discursos ou desenvolvemos os argumentos que justificam a negação do outro” (Maturana, 1988d: 78).
“A emoção fundamental que torna possível a história de hominização é o amor. Sei que pode parecer chocante o que digo, porém insisto: é o amor. Não estou falando do ponto de vista do cristianismo. Se vocês me perdoam, direi que, desgraçadamente, a palavra amor foi desvirtuada, a emoção que esta palavra conota foi desvitalizada, de tanto se dizer que o amor é algo especial e difícil. O amor é constitutivo da vida humana, porém não é nada especial. O amor é o fundamento do social, porém nem toda convivência é social. O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas onde se realiza a operacionalidade da aceitação do outro como um legítimo outro na convivência – e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social. Por isso, digo que o amor é a emoção que funda o social; sem aceitação do outro na convivência, não há fenômeno social.
Em outras palavras, digo que somente são sociais as relações que se fundam na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência e que tal aceitação é o que constitui uma conduta de respeito. Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas, onde haja aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações de ações, não podemos esperar que surja a linguagem. Se não há interações na aceitação mútua, produz-se separação ou destruição. Em outras palavras, se na história dos seres vivos existe alguma coisa que não pode surgir na competição, essa coisa é a linguagem.
Repito o que já disse: a linguagem, como domínio de coordenações condutuais consensuais de coordenações condutuais consensuais, somente pode surgir em uma história de coordenações condutuais consensuais – e isso exige uma convivência constituída na operacionalidade da aceitação mútua, num espaço de ações que envolve constantemente coordenações condutuais consensuais nessa operacionalidade. Como também já disse, isso deve ter ocorrido na história evolutiva de nossos ancestrais; o que sabemos sobre o seu modo de vida mais provável, há três milhões de anos, revela que já existia naquela época tal modo de vida.
Ademais, este modo de vida ainda se conserva em nós. Com efeito, ainda somos animais coletores, e isso fica evidente tanto no nosso comportamento nos supermercados [como nos sentimos à vontade recolhendo os produtos nas gôndolas e prateleitas] quanto na nossa dependência vital da agricultura; ainda somos animais compartilhadores, e isso fica evidente na criança que tira a comida da boca para dá-la a mãe, e no que sentimos quando alguém nos pede uma esmola; ainda somos animais que vivem na coordenação consensual de ações, e isso notamos pela facilidade com que nos dispomos a participar de atividades cooperativas, quando não temos um argumento racional para recusar; ainda somos do tipo de animais cujos machos participam no cuidado das crias, coisa que pode ser comprovada pela disposição dos homens para cuidar dos filhos, quando não têm argumentos racionais para desvalorizar tal atividade; ainda somos animais que vivemos em grupos pequenos, o que é evidente em nosso sentido de pertencer a uma família; ainda somos animais sensuais, que vivemos espontaneamente o tocar-se e acariciar-se, quando não pertencemos a uma cultura que nega a legitimidade do contato corporal; e, por último, ainda somos animais que vivemos a sensualidade no encontro personalizado com o outro, o que fica evidente pela nossa queixa quando isso não ocorre.
Porém, sobretudo, no presente da história evolutiva a que pertencemos, e que começou com a origem da linguagem – quando o estar na linguagem se fez parte do modo de vida que, ao conservar-se, constituiu a linhagem Homo a que pertencemos – somos animais dependentes do amor. O amor é a emoção central na história evolutiva humana desde seu início, e toda essa história se dá como uma história na qual a conservação de um modo de vida no qual o amor, a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, é uma condição necessária para o desenvolvimento físico, comportamental, psíquico, social e espiritual normal da criança, assim como para a conservação da saúde física, comportamental, psíquica, social e espiritual do adulto.
Num sentido estrito, os seres humanos nos originamos no amor e somos dependentes dele. Na vida humana, a maior parte do sofrimento vem da negação do amor: os seres humanos somos filhos do amor... Não estou falando como cristão, não me importa o que disse o Papa, não estou imitando o que ele disse, estou falando a partir da biologia. Estou falando a partir da compreensão das condições que tornam possível uma história de interações recorrentes suficientemente íntima para que possa ocorrer a ‘recursividade’ nas coordenações condutuais consensuais que constitui a linguagem” (Maturana, 1988c: 24-6) (n. i.).
Quando Maturana fala que “o amor é o fundamento do social”, ele está se referindo àquela “pegajosidade biológica” (cuja origem é associal) que funda o social, porquanto se manifesta como abertura e conservação de espaços de convivência que englobam vários indivíduos numa mesma proximidade, a partir do prazer da companhia, da simpatia, do afeto, da preferência, mas, fundamentalmente, pela aceitação do outro. “A emoção que funda o social, como a emoção que constitui o domínio de ações no qual o outro é aceito como um legítimo outro na convivência, é o amor” (Maturana, 1988c: 27). Destarte, “relações humanas que não estejam fundadas no amor... não são relações sociais. Portanto, nem todas as relações humanas são sociais, tampouco o são todas as comunidades humanas, porque nem todas se fundam na operacionalidade da aceitação mútua. Distintas emoções especificam distintos domínios de ações. Conseqüentemente, comunidades humanas fundadas em outras emoções, distintas do amor, estarão constituídas em outros domínios de ações que não serão o da colaboração e do compartilhamento em coordenações de ações que implicam a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, e não serão comunidades sociais” (Idem: 27-8).
Para Maturana, portanto, “os seres humanos não somos todo o tempo sociais; o somos somente na dinâmica das relações de aceitação mútua. Sem ações de aceitação mútua não somos sociais. Com efeito, na biologia humana, o social é tão fundamental que aparece a cada instante e por todas as partes” (Maturana, 1988d: 77).
Como vimos, nem todas as relações de convivência são relações sociais. Relações de trabalho, por exemplo, não são relações sociais. “É justamente porque as relações de trabalho não são relações sociais que se requer leis que as regulem. No marco das relações sociais não cabem os sistemas legais, porque as relações humanas se dão na aceitação mútua e, portanto, no respeito mútuo” (Maturana, 1988d: 78).
Da mesma forma, relações hierárquicas também não são relações sociais, porquanto “se fundam na negação mútua implícita, na exigência de obediência e entrega de poder que trazem consigo. O poder surge com a obediência e a obediência constitui o poder como relações de mútua negação. As relações hierárquicas são relações fundadas na sobrevalorização e na desvalorização que constituem, respectivamente, o poder e a obediência e, portanto, não são relações sociais... O poder não é algo que um ou outro indivíduo tem, é uma relação na qual se concede algo a alguém através da obediência – e a obediência se constitui quando alguém faz algo que não quer fazer, cumprindo uma ordem. O que obedece nega a si mesmo, porque, para salvar ou obter algo, faz o que não quer a pedido do outro. O que obedece atua com contrariedade, e na contrariedade nega o outro, porque o rejeita e não o aceita como um legítimo outro na convivência. Ao mesmo tempo, o que obedece nega-se a si mesmo ao obedecer, dizendo: ‘não quero fazer isso, porém, se não obedeço, me expulsam ou me castigam, e não quero que me expulsem ou castiguem’. Porém, o que manda também nega o outro e se nega a si mesmo ao não encontrar-se com o outro como um legítimo outro na convivência. Nega-se a si mesmo porque justifica a legitimidade da obediência do outro em sua sobrevalorização, e nega o outro porque justifica a legitimidade da obediência com a [ou a partir da suposição da] inferioridade do outro.
De sorte que as relações de poder e de obediência, as relações hierárquicas, não são relações sociais. Um exército não é um sistema social... [ainda que] entre os membros de um exército possam efetivar-se relações sociais” (Maturana, 1988d: 76-7) (n. i.).
Para concluir, Maturana diz que “os fenômenos sociais têm a ver com a biologia e que a aceitação do outro não é um fenômeno cultural. Além disso,” – prossegue – “sustento que o cultural, no social, tem a ver com a delimitação ou restrição da aceitação do outro. É na justificação racional dos modos de convivência onde inventamos os discursos ou desenvolvemos os argumentos que justificam a negação do outro” (Maturana, 1988d: 78).
7 - COMPETIÇÃO OU COOPERAÇÃO?
Baseado neste arcabouço conceitual, Maturana vai bater de frente com as explicações correntes sobre a natureza competitiva do ser humano, seja nas suas formas hard (do tipo das hipóteses urdidas pelos sociobiólogos e pelos socialdarwinistas), seja nas suas formas mais soft (do tipo das hipóteses cerebradas por economistas, sociólogos, antropólogos e biólogos da evolução que trabalham, baseados na teoria dos jogos, com o nonzero, ou melhor, com a non-zero-sumness, com a rational choice, enfim, com a combinação otimizada entre competição e colaboração ou com a prevalência da relação “olho por olho” a longo prazo) (2).
Seu esquema explicativo é simples. Se o que nos torna humanos é a linguagem, e se a linguagem é uma coisa que, definitivamente, não pode surgir na competição, então a competição não pode ser constitutiva do ser humano, nem individual nem socialmente falando, isto é, individual –e socialmente falando, o primata bípede que nos antecedeu não se teria humanizado (ou hominizado) se tivesse vivido num ambiente predominantemente competitivo.
Maturana sustenta que “o fenômeno da competição que se dá no âmbito cultural humano e que implica contradição e negação do outro, não se dá no âmbito biológico. Os seres vivos não humanos não competem, deslizam uns sobre os outros e com os outros em congruência recíproca ao conservar sua autopoiesis e sua correspondência com um meio que inclui a presença de outros e não os nega.
Se dois animais se encontram diante de um alimento e somente um come e o outro, não, isso não é competição. E não é [competição] porque não é central para o que ocorre [inclusive e sobretudo em termos emocionais] com o que come, que o outro não coma. Ao contrário, no âmbito humano, a competição constitui-se culturalmente quando o fato de que outro não obtenha o que alguém obtém é parte fundamental do [e constitui o próprio] modo de relação.
A vitória é um fenômeno cultural que se constitui com a derrota do outro. A competição é ganha quando o outro fracassa diante de nós, e se constitui quando a perspectiva de que isso ocorra de fato torna-se culturalmente desejável. No âmbito biológico não humano tal fenômeno não se dá. A história evolutiva dos seres vivos não envolve competição. Por isso, da evolução do humano não participa a competição, senão a conservação de um fenótipo ontogênico ou modo de vida, no qual o linguagear pode surgir como uma variação circunstancial para sua realização quotidiana que não requer nada especial” (Maturana, 1988c: 21-2) (n. i.).
Por outro lado, observa Maturana, “o ato de compartilhar não consiste em deixar que o outro coma ao seu lado. Consiste em transferir o que se tem para o outro. Eu passo para outro algo que tenho, esse é um ato de compartilhar.... Somos animais compartilhadores porque pertencemos à história de compartilhar. Eu não sei em que momento desses três milhões de anos atrás começou o compartilhamento em nossa linhagem, porém somos animais compartilhadores” (Maturana, s/d: 71-72). “O compartilhamento é uma forma de colaboração. Logo, somos animais cooperadores. A cooperação se dá somente e exclusivamente nas relações de mútuo respeito. A cooperação não se dá nas relações de dominação e submissão. A obediência não é um ato de cooperação. Nós somos animais enquanto pertencemos à história que nos dá origem, porém somos cooperadores devido a que não temos impedimentos para cooperar; quando, nas relações amistosas, aceitamos o convite para cooperar, sentimo-nos bem” (Idem).
Maturana confronta também aquelas teorias que tentam explicar a evolução humana e o (ou em virtude do) extraordinário crescimento do cérebro humano, a partir do desenvolvimento da mão no (e/ou do) uso da ferramenta, sobretudo da arma utilizada para matar.
Em primeiro lugar, ele sustenta que “não é o tamanho do cérebro o que torna possível a linguagem [que nos constitui humanos] e sim o modo de conviver”, o qual jamais se teria conservado sem uma forte emoção amistosa (base da colaboração) capaz de permitir a intimidade na convivência com certa permanência. Se compararmos o homem com o chimpanzé, veremos que as diferenças genéticas (em termos de DNA) são muito pequenas, não ultrapassando os 3%; porém, “as diferenças no viver são superlativas, somos muito distintos” (Maturana, s/d: 70), ou seja: o fundamental aqui é o fenotípico, não o genotípico.
Em segundo lugar, ele sustenta que nada obriga que a mão se tenha desenvolvido mais ao fabricar instrumentos do que ao debulhar e descascar vegetais e, sobretudo, ao acariciar sensualmente todas as concavidades, convexidades e reentrâncias dos corpos dos semelhantes (tanto dos parceiros sexuais, quanto dos filhos e de outros membros do grupo). Quem quer ver uma coisa vê essa coisa, ou melhor, quem tem medo de ver uma coisa não vê essa coisa – como aqui parece ser o caso: culturalmente vacinado contra o contato corporal, o pensamento da civilização patriarcal e predadora não pode admitir a centralidade da sensualidade na geração continuada do humano.
Em terceiro lugar, ele sustenta que o ato de matar é, ao contrário do que supõe qualquer tipo de hunting hipothesis, “completamente distinto do ato de caçar. Se alguém observa as culturas caçadoras, vê que estas culturas consideram o ato de caçar como um ato sagrado: há agradecimento pelo animal que morre porque isso produz alimento para a vida. Da morte do animal se vai obter vida; porém, o ato de matar... tem um caráter totalmente distinto, não se mata... para comer e, sim, para exterminar. O ato de matar... é um assassinato! Quando se mata para exterminar, isso traz consigo uma emoção completamente distinta, não há agradecimento, é um ato de apropriação, é completamente diferente. O artefato que uso, por exemplo, para caçar... um animal que vou consumir, é um instrumento de caça. Todavia, o instrumento que uso para matar [e. g.] um lobo [o qual, pelo fato de ter sido excluído da minha convivência, tornou-se uma ameaça para os outros animais dos quais me apropriei e, por conseguinte, inclusive para mim e para meus semelhantes neste modo de vida que instaurei] é uma arma. A emoção é distinta e é a emoção com a qual se usa um instrumento que o torna um instrumento de caça ou uma arma. No momento em que se mata por matar, aparece a guerra, aparece a inimizade, porém aparece outra coisa mais: aparece a legitimidade da solução de um conflito com a total negação do outro, porque é assim que funciona. A apropriação e a guerra caminham juntas e se desencadeiam mutuamente, quando da negação do outro se passa à sua eliminação, quando alguém se apropria do modo de viver do outro, quando a apropriação se converte em um modo de vida e quando alguém pode se apropriar de tudo, das coisas, das idéias, do sexo do outro... O ato de matar o lobo para excluí-lo da sua comida não é trivial na história. As crianças aprendem a fazer isso como uma coisa normal e isso se transforma em um modo de viver e, portanto, em uma cultura. Não se aprende somente a técnica de matar o lobo, se aprende também a emoção que acompanha o ato, a emoção que acompanha a apropriação, a emoção que acompanha o controle. Se se perde a confiança, aparece o controle, as relações passam a ser relações de controle e com isso temos a multiplicação do patriarcado” (Maturana, s/ d: 75-6).
Seu esquema explicativo é simples. Se o que nos torna humanos é a linguagem, e se a linguagem é uma coisa que, definitivamente, não pode surgir na competição, então a competição não pode ser constitutiva do ser humano, nem individual nem socialmente falando, isto é, individual –e socialmente falando, o primata bípede que nos antecedeu não se teria humanizado (ou hominizado) se tivesse vivido num ambiente predominantemente competitivo.
Maturana sustenta que “o fenômeno da competição que se dá no âmbito cultural humano e que implica contradição e negação do outro, não se dá no âmbito biológico. Os seres vivos não humanos não competem, deslizam uns sobre os outros e com os outros em congruência recíproca ao conservar sua autopoiesis e sua correspondência com um meio que inclui a presença de outros e não os nega.
Se dois animais se encontram diante de um alimento e somente um come e o outro, não, isso não é competição. E não é [competição] porque não é central para o que ocorre [inclusive e sobretudo em termos emocionais] com o que come, que o outro não coma. Ao contrário, no âmbito humano, a competição constitui-se culturalmente quando o fato de que outro não obtenha o que alguém obtém é parte fundamental do [e constitui o próprio] modo de relação.
A vitória é um fenômeno cultural que se constitui com a derrota do outro. A competição é ganha quando o outro fracassa diante de nós, e se constitui quando a perspectiva de que isso ocorra de fato torna-se culturalmente desejável. No âmbito biológico não humano tal fenômeno não se dá. A história evolutiva dos seres vivos não envolve competição. Por isso, da evolução do humano não participa a competição, senão a conservação de um fenótipo ontogênico ou modo de vida, no qual o linguagear pode surgir como uma variação circunstancial para sua realização quotidiana que não requer nada especial” (Maturana, 1988c: 21-2) (n. i.).
Por outro lado, observa Maturana, “o ato de compartilhar não consiste em deixar que o outro coma ao seu lado. Consiste em transferir o que se tem para o outro. Eu passo para outro algo que tenho, esse é um ato de compartilhar.... Somos animais compartilhadores porque pertencemos à história de compartilhar. Eu não sei em que momento desses três milhões de anos atrás começou o compartilhamento em nossa linhagem, porém somos animais compartilhadores” (Maturana, s/d: 71-72). “O compartilhamento é uma forma de colaboração. Logo, somos animais cooperadores. A cooperação se dá somente e exclusivamente nas relações de mútuo respeito. A cooperação não se dá nas relações de dominação e submissão. A obediência não é um ato de cooperação. Nós somos animais enquanto pertencemos à história que nos dá origem, porém somos cooperadores devido a que não temos impedimentos para cooperar; quando, nas relações amistosas, aceitamos o convite para cooperar, sentimo-nos bem” (Idem).
Maturana confronta também aquelas teorias que tentam explicar a evolução humana e o (ou em virtude do) extraordinário crescimento do cérebro humano, a partir do desenvolvimento da mão no (e/ou do) uso da ferramenta, sobretudo da arma utilizada para matar.
Em primeiro lugar, ele sustenta que “não é o tamanho do cérebro o que torna possível a linguagem [que nos constitui humanos] e sim o modo de conviver”, o qual jamais se teria conservado sem uma forte emoção amistosa (base da colaboração) capaz de permitir a intimidade na convivência com certa permanência. Se compararmos o homem com o chimpanzé, veremos que as diferenças genéticas (em termos de DNA) são muito pequenas, não ultrapassando os 3%; porém, “as diferenças no viver são superlativas, somos muito distintos” (Maturana, s/d: 70), ou seja: o fundamental aqui é o fenotípico, não o genotípico.
Em segundo lugar, ele sustenta que nada obriga que a mão se tenha desenvolvido mais ao fabricar instrumentos do que ao debulhar e descascar vegetais e, sobretudo, ao acariciar sensualmente todas as concavidades, convexidades e reentrâncias dos corpos dos semelhantes (tanto dos parceiros sexuais, quanto dos filhos e de outros membros do grupo). Quem quer ver uma coisa vê essa coisa, ou melhor, quem tem medo de ver uma coisa não vê essa coisa – como aqui parece ser o caso: culturalmente vacinado contra o contato corporal, o pensamento da civilização patriarcal e predadora não pode admitir a centralidade da sensualidade na geração continuada do humano.
Em terceiro lugar, ele sustenta que o ato de matar é, ao contrário do que supõe qualquer tipo de hunting hipothesis, “completamente distinto do ato de caçar. Se alguém observa as culturas caçadoras, vê que estas culturas consideram o ato de caçar como um ato sagrado: há agradecimento pelo animal que morre porque isso produz alimento para a vida. Da morte do animal se vai obter vida; porém, o ato de matar... tem um caráter totalmente distinto, não se mata... para comer e, sim, para exterminar. O ato de matar... é um assassinato! Quando se mata para exterminar, isso traz consigo uma emoção completamente distinta, não há agradecimento, é um ato de apropriação, é completamente diferente. O artefato que uso, por exemplo, para caçar... um animal que vou consumir, é um instrumento de caça. Todavia, o instrumento que uso para matar [e. g.] um lobo [o qual, pelo fato de ter sido excluído da minha convivência, tornou-se uma ameaça para os outros animais dos quais me apropriei e, por conseguinte, inclusive para mim e para meus semelhantes neste modo de vida que instaurei] é uma arma. A emoção é distinta e é a emoção com a qual se usa um instrumento que o torna um instrumento de caça ou uma arma. No momento em que se mata por matar, aparece a guerra, aparece a inimizade, porém aparece outra coisa mais: aparece a legitimidade da solução de um conflito com a total negação do outro, porque é assim que funciona. A apropriação e a guerra caminham juntas e se desencadeiam mutuamente, quando da negação do outro se passa à sua eliminação, quando alguém se apropria do modo de viver do outro, quando a apropriação se converte em um modo de vida e quando alguém pode se apropriar de tudo, das coisas, das idéias, do sexo do outro... O ato de matar o lobo para excluí-lo da sua comida não é trivial na história. As crianças aprendem a fazer isso como uma coisa normal e isso se transforma em um modo de viver e, portanto, em uma cultura. Não se aprende somente a técnica de matar o lobo, se aprende também a emoção que acompanha o ato, a emoção que acompanha a apropriação, a emoção que acompanha o controle. Se se perde a confiança, aparece o controle, as relações passam a ser relações de controle e com isso temos a multiplicação do patriarcado” (Maturana, s/ d: 75-6).
Para Maturana, é como se tudo fizesse parte de um mesmo complexo macro-cultural: “a guerra não acontece, nós a fazemos; a miséria não é um acidente histórico, é obra nossa, porque queremos um mundo com as vantagens anti-sociais, que traz consigo a justificação ideológica da competição na justificação da acumulação de riqueza, mediante a geração de servidão sob o pretexto da eficácia produtiva... Enfim, afirmamos que o indivíduo humano se realiza na defesa competitiva de seus interesses porque não queremos viver sem dar-nos conta de que toda individualidade é social e só se realiza quando inclui cooperativamente em seus interesses os interesses dos outros seres humanos que a sustentam” (Maturana, 1985a: 85).
Maturana sustenta que “foi a conduta dos seres humanos... que fez do presente humano o que é...; vivemos o mundo que vivemos porque, socialmente, não queremos viver outro” (Maturana, 1985a: 85). Ora, impõem-se aqui, inevitavelmente, as perguntas: mas, afinal, que mundo é esse em que vivemos? E por que não queremos viver em outro?
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