24 de mai. de 2008

11 - FUKUYAMA E O DEBATE ATUAL SOBRE AS ORIGENS BIOLÓGICAS DA COOPERAÇÃO

Para ter uma idéia da posição atual do debate sobre as origens da cooperação, vamos tomar como exemplo as recentes especulações de Francis Fukuyama (1999) sobre o tema.
Fukuyama assinala, com razão, que o debate sobre as origens da cooperação é muito difícil porque não é propriamente um debate com conceitos, mas com preconceitos, e isso se deve ao fato de que a tradição social darwinista do século XIX e início do século XX – com Herbert Spencer e Madsen Grant, por exemplo –, somada, depois, às insanidades nazistas e, depois, ainda, à sociobiologia, fizeram um uso tão desastroso das teorias biológicas, quer dizer, dos paralelos biologicistas, que não apenas sociólogos e antropólogos, mas todas as pessoas de inspiração humanista, ficaram chocadas e vacinadas contra qualquer coisa que pudesse sugerir a existência de “uma natureza humana estável subjacente ao comportamento social” que fosse capaz de induzir à geração de padrões de comportamento social. Este preconceito levou os estudiosos a estabelecerem um dogma contra o qual não se podia sequer admitir discussão: “todo comportamento humano foi considerado ‘socialmente construído’, isto é, movido por normas culturais que moldavam o comportamento após o nascimento” (Fukuyama, 1999: 167) (n. g.).
Todavia, a partir da segunda metade do século XX, surge uma novidade – uma nova biologia – e Fukuyama, ao contrário de muitos teóricos do capital social, não só se dá conta do significado disso como quer buscar, aí, uma parte da resposta para a pergunta, até então irrespondida por esses teóricos, de por que os seres humanos podem ter, espontaneamente, capacidade de cooperar ou propensão inata para produzir capital social.
“Em contraste” – escreve Fukuyama – “com as hipóteses completamente relativistas da antropologia cultural, grande parte da nova biologia sugere que a variabilidade cultural humana não é tão grande quanto podia parecer à primeira vista. Assim como as linguagens humanas podem ser infinitamente variadas, mas refletem profundas estruturas lingüísticas comuns originárias da área do neocórtex, também as culturas humanas refletem requisitos sociais comuns determinados não pela cultura, mas pela biologia. Nenhum biólogo respeitável negaria que a cultura é importante e, com freqüência, exerce uma influência que pode superar os instintos e impulsos naturais. A própria cultura – a capacidade de transmitir regras comportamentais através de gerações de maneira não genética –, firmemente instalada no cérebro humano, constitui uma importante fonte de vantagem evolutiva para a espécie humana. Mas esse conteúdo cultural está no topo de uma subestrutura natural que limita e canaliza a criatividade cultural para populações de indivíduos. O que a nova biologia sugere para os observadores sensíveis não é o determinismo biológico, mas sim uma visão mais equilibrada da interação natureza-criação na moldagem do comportamento humano” (Fukuyama, 1999: 168).
Escaldado, talvez, pelo conhecimento da histórica repercussão negativa dos paralelos biológicos, Fukuyama é cuidadoso: “Em geral, os comportamentos geneticamente controlados que influenciam fenômenos sociais, como parentesco, ou a propensão para formar grupos na sociedade civil são mediados pela cultura; assim, não se pode fazer nenhuma conexão causal direta entre, digamos, a família nuclear e uma disposição genética para a reprodução. Em seres humanos, muitos dos comportamentos que parecem estar sob controle biológico não são impulsos ou instintos deterministas, mas sim propensões para aprender em determinados estágios do desenvolvimento de um indivíduo. Mais uma vez, o exemplo da linguagem é um meio útil para entender a interação das forças genéticas e culturais. A capacidade de aprender um idioma parece estar sob forte controle genético, surgindo na idade de doze meses, mais ou menos, e conduzindo à espantosa capacidade das crianças para adquirir muitas novas palavras por dia. Esta capacidade dura apenas alguns anos; crianças que cresceram sem aprender a falar, ou adultos que procuram aprender novos idiomas, nunca desenvolvem a mesma fluência que têm as crianças. A estrutura da linguagem também parece estar presente no nascimento; as crianças esperam certas regularidades em regras a respeito de tempos, plurais etc., sem que isso lhes precise ser ensinado. Por outro lado, as próprias palavras e grande parte da estrutura sintática de uma dada linguagem são determinadas culturalmente, assim como todas as implicações sutis de certas frases no contexto de uma determinada cultura. Que as crianças irão aprender determinadas coisas em determinadas épocas, de acordo com uma determinada estrutura, é estabelecido pela biologia; o que elas aprendem é domínio da cultura” (Fukuyama, 1999: 168-9) (g. a.).
A hipótese básica de Fukuyama é a de que “grande parte do comportamento social não é aprendida, mas faz parte da herança genética...” (Fukuyama, 1999: 176). Mas, aí, ele acrescenta: “... tanto do homem como de seus antepassados macacos” (Idem), o que o leva a uma incursão na primatologia de caráter mais duvidoso do que sua recorrência à nova biologia – ou seja “`as origens da revolução biológica que está em andamento na segunda metade do século XX” (Idem: 167) – a qual, no essencial, parece bem razoável.
Supondo que “talvez a maneira mais fácil de demonstrar que o comportamento cooperativo nos seres humanos tem base genética e não é apenas culturalmente construído seja observar não os seres humanos, mas seu parente genético mais próximo, o chimpanzé”, Fukuyama cai nas especulações de Frans de Waal sobre “política chimpanzé” – baseadas na suposta capacidade observada de esses animais “se organizarem para competição e violência grupais” – coisa, como já se disse, muito discutível, tanto do ponto de vista da interpretação do comportamento desses primatas quanto do ponto de vista do que se entende por política (Fukuyama, 1999: 172/4) (n. g.).
Pulando essa parte, entretanto, as conclusões de Fukuyama sobre a relação entre natureza humana e ordem social constituem uma boa introdução à investigação sobre as origens da cooperação: “Se aceitarmos que a propensão humana para cooperar em grupos não é apenas socialmente construída ou o produto de uma escolha racional, e que a cooperação tem uma base natural ou genética, surge a pergunta de como a cooperação apareceu” (Fukuyama, 1999: 178). Para responder esta pergunta, Fukuyama vai partir da premissa de que “é impossível explicar o comportamento grupal, exceto em termos dos interesses dos indivíduos que o compõem” – premissa, segundo ele, compartilhada tanto pela biologia da evolução contemporânea quanto pela economia moderna (Idem). Mas, se é assim, “como então explicamos a emergência do altruísmo e do comportamento social?” (Idem-idem).
Segundo Fukuyama, “os dois principais caminhos pelos quais os interesses individuais levam à cooperação social são a seleção por parentesco e a reciprocidade. A seleção por parentesco, também chamada de aptidão inclusiva, foi uma teoria desenvolvida por William Hamilton nos anos 60 [1964] e popularizada por Richard Dawkins em seu livro ‘The Selfish Gene’ [1989]”. Embora qualquer teoria do comportamento deva começar com os interesses próprios dos indivíduos, estes interesses estão em transmitir seus genes aos filhos e não, necessariamente, na sobrevivência da própria criatura. Portanto, afirma Dawkins, são os genes os egoístas, não os organismos individuais. Hamilton mostrou que parentes seriam altruístas uns com os outros na estrita proporção do número de genes que eles tivessem em comum... “Portanto,” – conclui Fukuyama – a sociabilidade humana começa com o parentesco; o altruísmo existe na proporção do grau de parentesco” (Fukuyama, 1999: 178) (n. i.).
No entanto, ele constata que “também existe, claramente, comportamento altruísta e cooperativo no mundo natural entre não parentes”, o que indica que deve haver outra fonte natural de comportamento social (Fukuyama, 1999: 178). “Além da seleção por parentesco, a segunda fonte natural comumente reconhecida de comportamento social é o altruísmo recíproco. As teorias biológicas de altruísmo recíproco tomaram muita coisa emprestada da economia e da teoria dos jogos para mostrar como a reciprocidade podia se desenvolver em indivíduos regidos por genes egoístas, fazendo uso, em particular, da solução repetida de Robert Axelrod para o dilema do prisioneiro... Promovendo um torneio de estratégias, Robert Axelrod [1984] mostrou como uma solução cooperativa poderia surgir em um jogo iterado (isto é, repetido), no qual os mesmos jogadores eram forçados a interagir com o outro repetidamente. Usando uma estratégia simples de pagar na mesma moeda, na qual um jogador retribuía cooperação com cooperação e traição com traição, seguiu-se um processo de aprendizado, no qual cada um deles acabou reconhecendo que, a longo prazo, a estratégia cooperativa produzia um retorno individual mais alto do que a estratégia de traição, e, portanto, era racionalmente ótima” (Idem: 180-1) (n. i.) (g. a. + n. g.).
Fukuyama assinala que “a teoria dos jogos evoluiu consideravelmente desde a publicação dos resultados do torneio de Axelrod, e surgiram muitas outras estratégias que se mostraram, no mínimo, tão estáveis ao longo do tempo quanto a de pagar na mesma moeda. Mas ela nos diz muito a respeito de como confiança e cooperação emergem em situações diferentes, desde os homens aprendendo a caçar juntos nas sociedades primitivas até as modernas corporações procurando persuadir os consumidores da qualidade dos seus produtos. A chave é a iteração: Se você sabe que terá de trabalhar com o mesmo grupo de pessoas por um período prolongado e sabe que elas irão se lembrar de quando você foi honesto com elas e quando trapaceou, então será do seu interesse agir honestamente. Numa situação como esta, uma norma de reciprocidade irá emergir espontaneamente, porque a reputação passará a ser um ativo” (Fukuyama, 1999: 181-2) (g. a + n. g.).
Argumentando que a estratégia iterativa de Axelrod vale tanto para agentes humanos racionais quanto para agentes não racionais (isto é, animais), Fukuyama constata que “o altruísmo recíproco tem maior probabilidade de se desenvolver em espécies que experimentam interações repetidas, tenham vidas relativamente longas e possuam as capacidades cognitivas de distinguir colaboradores de traidores com base numa série de sinais sutis” (Fukuyama, 1999: 182). Ele cita o biólogo Richard Trivers, que “afirma que entre os seres humanos se desenvolveram precisamente esses mecanismos para o altruísmo recíproco” (Idem). Segundo Trivers (1985), teria havido, durante nossa história evolutiva recente, “uma forte seleção sobre nossos ancestrais, para desenvolver uma variedade de interações recíprocas. Baseio esta conclusão, em parte, no forte sistema emocional que subjaz a nossos relacionamentos com amigos, colegas, conhecidos e assim por diante. Os seres humanos, rotineiramente, se ajudam uns aos outros em momentos de perigo (por exemplo, acidentes, predação e ataques de outros seres humanos)... Durante o período pleistoceno, e provavelmente antes, uma espécie hominídea teria encontrado as precondições para a evolução do altruísmo recíproco: por exemplo, vida longa, baixo índice de dispersão, vida em grupos pequenos, estáveis e mutuamente dependentes e um longo período de cuidados paternos, conduzindo a contatos extensos com parentes próximos ao longo de muitos anos” (Trivers, 1985: 386 – apud Fukuyama: Idem). Fukuyama reconhece “que a história acima é uma daquelas que os sociobiólogos são freqüentemente acusados de inventar. Mas” – retruca – “é preciso perguntar por que o sistema emocional humano está equipado com sentimentos como raiva, orgulho, vergonha e culpa, todos os quais entram em ação em resposta a pessoas que ou são honestas e cooperam, ou trapaceiam e infringem as regras, em situações do tipo do dilema do prisioneiro” (Fukuyama: Idem).
Todavia, Fukuyama registra que há uma outra fonte de sociabilidade sugerida por antropólogos evolucionários: a caça coletiva de grandes animais, que exige esforços cooperativos de várias pessoas e, mais importante ainda, a conseqüente partilha do alimento. “É notável que, em quase todas as culturas humanas conhecidas, o ato de comer seja, quase sempre, um evento público. Embora exerçamos a maior parte de nossas funções corporais privadamente, parecemos ter um desejo natural de dividir comida com outras pessoas, de piqueniques da empresa a jantares familiares. O antropólogo Adam Kuper [1993] destaca que, mesmo nos Estados Unidos, onde o individualismo e a competição regem supremos como valores culturais, os dois feriados mais importantes são o Dia de Ação de Graças e o Natal, festas construídas em torno de grandes banquetes que comemoram não realizações individuais, mas a solidariedade social. Tudo isso sugere que as condições ambientais dos primeiros homens apoiavam o desenvolvimento de uma propensão para a reciprocidade que não era simplesmente cultural” (Fukuyama, 1999: 183) (n. i.).
Partindo da premissa de que os seres humanos não só aprendem culturalmente como recebem geneticamente – por algum, alguns ou todos os motivos apresentados acima – a propensão para cooperar, vem a pergunta: e a propensão para competir, também esta viria gravada nos gens humanos? Em outras palavras, afinal, o ser humano é inerentemente cooperativo ou competitivo?
Fukuyama vai abordar essa questão de uma maneira que não rompe com aquela visão do homem como “átomo de interesse”. Para ele, “o altruísmo recíproco não é o mesmo que altruísmo tout court. Além dos parentes genéticos, é difícil achar muitos exemplos de verdadeiro altruísmo de mão única na natureza... quase todo comportamento que entendemos por moral envolve troca de mão dupla de algum tipo e confere benefícios mútuos às partes envolvidas” (Fukuyama, 1999: 184).
A questão é a seguinte: os seres humanos seriam, “por natureza, ou agressivos, competitivos e hierárquicos, ou cooperativos, pacíficos e estimulantes”? Fukuyama responde que “basta pensar um pouco para ver que essas características aparentemente dicotômicas estão, na verdade, intimamente ligadas entre si em termos evolutivos. Cooperação e altruísmo recíproco surgiram inicialmente porque conferiam benefícios aos indivíduos que os possuíam. A capacidade de trabalhar juntos em grupos – capital social – constituía uma vantagem competitiva para os primeiros seres humanos e seus progenitores macacos, e assim as qualidades que sustentavam a cooperação grupal se disseminaram. À medida que os grupos se formam, começa a competição entre eles, provendo um incentivo para níveis mais altos de cooperação dentro de cada grupo. O comportamento social dos chimpanzés... está relacionado, ao menos em parte, com o fato de eles precisarem competir uns contra os outros em grupos. Nas palavras do biólogo Richard Alexander [1990], os seres humanos cooperam para competir” (Fukuyama, 1999: 184) (n. i.) (n. g.).
O caminho explicativo tomado a partir daqui por Fukuyama é péssimo. Fazendo um paralelo com a chamada “modernização defensiva”, pela qual “o aparecimento de uma nova tecnologia militar em um Estado força as sociedades concorrentes não só a adquirir a tecnologia, mas também a adquirir as instituições políticas e econômicas necessárias à produção dessa tecnologia, como poderes fiscais e regulamentadores, pesos e medidas padronizados e sistemas educacionais” – o que implica que “a competição militar externa promove a cooperação política doméstica” – ele supõe que “o grande tamanho e o rápido crescimento (em tempo evolucionário) do cérebro humano estão relacionados com uma série semelhante de corridas armamentistas entre seres humanos, tornando, assim, possíveis a linguagem, a sociedade, o Estado, a religião e todas as subseqüentes instituições sociais cooperativas criadas pelos seres humanos” (Fukuyama, 1999: 184-5).
Colaboração ou competição, anjos ou demônios? – pergunta Fukuyama. Colocada a questão, inadequadamente, nestes termos, ele vai optar pela resposta óbvia (e, como veremos no próximo capítulo, menos lógica): nem uma coisa nem outra unicamente, ou seja, as duas coisas simultaneamente. “Quando digo que os seres humanos são sociais por natureza, não quero dizer que eles são anjos. Isto é, eles não possuem reservatórios ilimitados de altruísmo, não são completamente honestos e não têm quaisquer impulsos especiais que os inclinem para colocar o bem da sua espécie, ou mesmo de números mais limitados de não parentes, acima do seu próprio bem. A teoria evolutiva dos jogos explica por que isto ocorre. Mesmo que pudéssemos imaginar uma sociedade de anjos na qual todos são totalmente honestos e inclinados a cooperar com os companheiros em empreendimentos comuns por razões genéticas ou culturais, essa situação não seria estável. Sabendo que todos os outros irão manter seus compromissos, um oportunista poderia ter ganhos muito maiores do que um grupo de pessoas que não cooperam. E basta um oportunista muito bem-sucedido para transformar anjos em mortais comuns e desconfiados. Isto é verdade no nível genético e também no cultural: um gene de oportunismo irá se espalhar entre a população de colaboradores, assim como o comportamento oportunista irá se espalhar numa sociedade de pessoas honestas. Isto explica por que esquemas piramidais têm funcionado particularmente bem em Utah, onde a honestidade e credulidade da comunidade mórmon têm sido, algumas vezes, vergonhosamente exploradas por escroques de todos os tipos (com freqüência, por um companheiro mórmon, que conhece melhor que a maioria as vulnerabilidades da comunidade).
Por outro lado” – prossegue Fukuyama – “uma sociedade na qual todas as pessoas são demônios que procuram iludir seus companheiros humanos em todas as oportunidades também não seria estável. A introdução de um pequeno número de colaboradores honestos na sociedade de demônios fará com que eles tenham grandes ganhos às expensas destes. Os demônios não conseguirão trabalhar uns com os outros e irão perdendo terreno para os anjos, que são colaborativos. No exemplo clássico da teoria evolutiva dos jogos, uma população mista de falcões e pombos não será estável se todos os pombos forem comidos pelos falcões; estes se voltarão uns contra os outros por falta de alimento.
Portanto, o que a teoria evolutiva dos jogos nos diz é que todas as sociedades terão populações mistas de anjos e demônios ou, mais precisamente, elas irão consistir em pessoas com diferentes proporções de qualidades angelicais e demoníacas ao mesmo tempo. A proporção de anjos e demônios irá depender dos retornos de cada um – isto é, as recompensas resultantes para os anjos que podem cooperar uns com os outros e para os demônios que têm sucesso em seu oportunismo” (Fukuyama, 1999: 185-6).
Posta a questão nestes termos, pode-se concluir que os humanos tiveram de desenvolver, basicamente, dois tipos de capacidades para poder sobreviver e prosperar: “capacidades cognitivas especiais que nos permitissem distinguir anjos de demônios” e capacidades “emocionais ou instintos especiais que garantissem um pagamento na mesma moeda: precisamos premiar os anjos e fazer o possível para punir os demônios” (Fukuyama, 1999: 187). Assim, “uma razão pela qual o cérebro humano teria se desenvolvido tão rapidamente foi a necessidade dos humanos de cooperar, enganar e decifrar o comportamento uns dos outros”, como sugeriram o psicólogo Nicholas Humphrey (1976) e o biólogo Richard Alexander (1974) – para os quais “a parte mais importante e perigosa do ambiente de um ser humano passou, rapidamente, a consistir em outros seres humanos, ao ponto de o desenvolvimento de qualidades cognitivas para a interação social ter rapidamente se tornado o requisito mais crítico para a adequação evolutiva. Depois que os grupos de seres humanos se tornaram a principal fonte de competição, desenvolveu-se uma situação de corrida armamentista na qual não havia limites para o grau de inteligência exigido para dominar a vida social, uma vez que os outros atores sociais estavam ganhando inteligência com a mesma rapidez” (Idem). Fukuyama cita, ainda, outros dois psicólogos – John Tooby e Leda Cosmides –, que especulam com “a existência de uma função cerebral especial e evoluída para resolver problemas sociais do tipo do dilema do prisioneiro” (Idem: 190).
Fukuyama afirma “que somos bons e agimos de forma altruísta, em grande parte do tempo, por egoísmo”, mas não deixa de registrar (sem o confessar diretamente) uma certa perplexidade diante do fato de que “as pessoas sempre acreditaram que o comportamento moral é um fim em si mesmo e reservam sua mais alta aprovação não para os demônios racionais [ou seja, aqueles que são levados a um comportamento moral ou altruísta porque este é do seu interesse], mas para os anjos verdadeiros”, isto é, aqueles que, de acordo com Kant, seguem uma regra por amor à mesma, inclusive nos casos em que o comportamento moral prejudica os seus próprios interesses. Para responder por que isso acontece, Fukuyama supõe “que o comportamento moral... [pode ter] um lugar especial na psique humana”, e envolve operações mais profundas do que a escolha racional ou o cálculo utilitarista (Fukuyama, 1999: 191).
Ocorre que o comportamento moral envolve as emoções. “Em termos da teoria dos jogos, não faz sentido preocupar-se até a morte por ter violado uma norma, que é apenas o resultado de um cálculo racional; contudo, as normas têm uma influência emocional tão forte que chamamos as pessoas que calculam seu interesse próprio com racionalidade absolutamente fria de psicopatas, não de seres humanos normais” (Fukuyama, 1999: 95). Existem normas especiais que dizem respeito aos meios corretos para definir, promulgar e forçar a obediência às normas comuns. O cumprimento dessas normas especiais “é muito útil na solução de problemas cooperativos, parece que desenvolvemos emoções especializadas para levar os indivíduos a fornecer voluntariamente esse bem comum”; por exemplo, as pessoas se esforçam “para fazer com que a justiça seja feita – o tempo todo, e em situações nas quais elas não têm qualquer interesse direto”: que a justiça seja feita é uma dessas normas especiais que tendemos a obedecer e cuja obediência força a obediência de inumeráveis normas comuns (Idem: 94-5). O aprendizado da cooperação ao longo de milhares ou milhões de anos teria levado os humanos a internalizarem normas especiais como essas, associando-as a fenômenos que ocorrem numa região mais profunda da psique ("límbica") do que aquela que calcula ("neocórtica").
Mas Fukuyama não desenvolve esta hipótese. Lembra, ao contrário, que “Robert Frank [1988] sugere outra razão para as emoções terem se tornado tão intimamente associadas à obediência a normas no decorrer da evolução do cérebro humano. As emoções têm a função de resolver o problema de compromisso digno de crédito em situação de dilema do prisioneiro. Sabe-se que um jogo de dilema do prisioneiro não tem uma solução cooperativa a menos que as partes possam, de alguma forma, se comprometerem previamente, o que simplesmente transforma o jogo em outro, de sinalizar um compromisso digno de crédito. Frank afirma que as emoções servem para prender os indivíduos em opções que parecem violar seus interesses de curto prazo, mas servem aos seus interesses de longo prazo por demonstrarem um compromisso digno de crédito” (Fukuyama, 1999: 196). Novamente aqui, parece prevalecer aquela visão do indivíduo como “unidade de interesse”.
Fukuyama, entretanto, acredita que seus argumentos não levam a essa conclusão. Tanto é assim que ele conclui dizendo que o “cérebro não só contém mecanismos inatos para detectar desertores e raciocinar a respeito de contratos sociais; ele também tem uma estrutura emocional concebida para punir desertores, mesmo em detrimento de interesses imediatos. Assim, dizer que os seres humanos são, por natureza, animais sociais não é afirmar que eles são inerentemente pacíficos, cooperativos ou dignos de confiança, uma vez que eles são, com freqüência, violentos, agressivos e enganosos. Significa, em vez disso, que eles possuem recursos especiais para detectar impostores e trapaceiros e lidar com eles, assim como para gravitar na direção de colaboradores e outros que seguem regras morais. Em conseqüência disso, eles chegam a normas cooperativas muito mais depressa do que poderiam prever pressupostos mais individualistas a respeito da natureza humana” (Fukuyama, 1999: 196).
Não são poucas as inconsistências do paralelo biológico utilizado por Fukuyama. O triunfo do Estado como padrão hierárquico de organização e modo autocrático de regulação, por tudo o que se sabe, é, originariamente, o triunfo da competição culturalmente construída sobre a colaboração espontânea e, portanto, um fator exterminador de capital social. Ora, do argumento apresentado pode-se inferir que foi a competição (“corrida armamentista primitiva”) que levou à evolução biológica (rápido aumento de tamanho do cérebro humano), a qual permitiu, por sua vez, o aparecimento de instituições como o Estado e, conseqüentemente, a instalação da cooperação em escala social (ou seja, a possibilidade de produção e reprodução ampliada de capital social) por meio de (“subseqüentes”) instituições sociais cooperativas!
Para além dessas flagrantes inconsistências, porém, Fukuyama cai naquilo que Thompson (1987) chama de “definição tecnológica da cultura humana”, na qual a ferramenta – a arma utilizada para matar – separa fundamentalmente a cultura da natureza, abandonando a outra vertente explicativa (segundo a qual é o ato de partilhar o alimento – o qual estabelece uma relação entre natureza e nutrição – que nos constitui humanos e nos faz alcançar a plena condição de seres humanos), ou seja, renegando uma “definição social da cultura humana”.
Com efeito, "na antropologia há duas correntes radicalmente opostas sobre as origens da cultura humana. Uma delas é a idéia popularizada por Robert Ardrey, de que foi a ferramenta que nos tornou humanos e uma cultura separada da natureza. Sob este ponto de vista, o ato de matar é aquele que mais identifica nossa condição de seres humanos. A arma tem a sua força própria, e arremessa aquele que a utiliza para um novo nicho ecológico, uma nova adaptação. E tudo que é deixado para trás nada mais é que a extirpada natureza do primitivo. A ferramenta, exatamente como foi mostrada no filme de Kubrick: “2001 – Uma Odisséia no Espaço”, é semelhante a um foguete espacial: no momento em que é detonado em direção aos céus, provoca o inferno àqueles que, por acaso, estejam sob ele... Mas há um outro quadro das origens da cultura humana... Glynn Isaac, em seu ensaio sobre o comportamento do proto-homínidas de compartilhar o alimento, nos diz que suas pesquisas arqueológicas na África levam a crer que o alimento era transportado de um lugar para outro, onde era distribuído em condições de relativa segurança. Neste exemplo, a atitude básica que nos torna humanos é a partilha do alimento; não é de admirar que os religiosos entre nós achem que a verdadeira condição humana é alcançada mais plenamente através da comunhão do alimento...” (Thompson, 1987: 22-3).
Contra os argumentos dos sociobiólogos e contra o enfoque de Robert Ardrey em “The Hunting Hypothesis” (1976), segundo o qual “foi somente quando machos do nosso ancestral semelhante ao antropóide se dedicaram seriamente à caça que nós começamos a acelerar em direção à espécie humana... [e que] homem é homem e não um chimpanzé, pois durante milhões e milhões de anos somente nós matávamos para viver”, deve-se lembrar dos estudos sobre “O Povo do Lago”, de Richard Leakey (1978): “os humanos não se comportam dessa forma: nós repartimos nossa comida e nosso argumento é que a temos repartido durante muitos milhões de anos. Repartir, não caçar ou colher, foi o que nos fez humanos” (Leakey e Lewin, 1978: 119/123).
E, se é para continuar lançando mão dos paralelos biológicos, deve-se lembrar ainda dos trabalhos de Lynn Margulis sobre a simbiose na evolução celular. Margulis, em “Symbiosis and Cell Evolution” (1981), sustenta que “a escassez de alimento na natureza provavelmente seleciona os simbiontes acima dos parceiros individualizados” (apud – Thompson, 1987: 22). E, por último, como faremos mais adiante, deve-se lembrar da obra inteira do biólogo Humberto Maturana, a qual oferece uma sólida base científica para um paralelo biológico capaz de, realmente, esclarecer alguma coisa sobre as origens da cooperação.
O problema, portanto, não está no ato de recorrer à biologia. Não é que deva ser proibido às ciências sociais recorrer à biologia para entender melhor as origens do comportamento humano em sociedade: esse tipo de coisa cheira à reserva de mercado de cientistas sociais, além de ser uma tolice – na medida em que somos mesmo seres biológicos. O problema está no tipo de biologia a que se recorre. Por exemplo, como assinalou Thompson, “[Edward O.] Wilson e [Humberto] Maturana constituem-se duas figuras opostas. Mas nestas duas diferentes biologias estão contidas duas idéias diferentes de metodologia, duas idéias diferentes de ordenação e, implicitamente, duas idéias diferentes de ordem política. A sociobiologia nega o valor ontológico do indivíduo – todo valor se baseia na combinação genética e nas relações de ‘capacidade natural de adaptação’. O indivíduo é simplesmente uma embalagem para o ‘gene egoísta’. Esta ótica de organização, das partes para o todo, é a visão de mundo de uma sociedade tecnocrata, assim como a percepção de Darwin, a respeito da luta pela sobrevivência, era a visão do mundo de uma sociedade industrial... [As idéias de Margulis sobre a seleção dos simbiontes] não estão em harmonia com os sistemas de valor de uma sociedade industrial [e constituem também uma afronta ao Darwinismo Social]. Esta noção de compartilhar o alimento é realmente fundamental para nossa biologia e nossa política. Não há descrição mais expressiva do que a nossa idéia da origem da humanidade, pois a maneira como alguém vê as origens da cultura humana é também uma descrição da maneira como esse alguém deseja ver o futuro da humanidade” (Thompson, 1987: 20/22) (n. i.).
Pelo que podemos ver com o exemplo de Francis Fukuyama, um dos poucos teóricos do capital social que se aventurou na investigação dos pressupostos, a posição atual do debate não avança grande coisa sobre o que disse Humberto Maturana e sobre o que disse Lynn Margulis, como veremos a seguir.

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