24 de mai. de 2008

INTRODUÇÃO

Como deve ter ficado claro na apresentação deste livro, venho trabalhando com o conceito de “Capital Social”.
Ora, capital social nada mais é do que, em suma, cooperação ampliada socialmente. Só pode haver produção de capital social se os seres humanos fizerem coisas que contradizem seus interesses imediatos, como, por exemplo, cooperar sem esperar recompensa imediata, proporcional ou prevista em prazo azado. Evidentemente, isso deveria levar qualquer pesquisador sério a investigar as origens da cooperação. A esse respeito, a direita, em geral, assim como boa parte dos economistas que se metem a explicar o funcionamento das sociedades humanas, assumem sem muito pudor a visão de que o homem é naturalmente competitivo, não passando a cooperação de resultado de uma racionalização visando a (ou na expectativa de) obter maiores ganhos no longo prazo – mas, aí, todos esses se vêem em enormes dificuldades para explicar porque existe tanta cooperação espontânea no mundo real.
Nada de realmente científico nos obriga a aceitar a suposição de que os seres humanos são inerentemente competitivos. Os pressupostos filosófico-antropológicos dos economistas e dos sociólogos que querem ser aceitos pelos economistas são, na verdade, discursos axiológico-normativos. Supor que a competição seja uma característica inerente à natureza humana – porque o homem é um animal e os animais competem por recursos e, no caso dos primatas, também por poder (afirmativas muito questionáveis, como veremos adiante) – é um axioma de ideologia moral e, portanto, não pode ser validado pelas regras válidas da ciência o que se constrói a partir dessa suposição, tomada de antemão como verdadeira. Se é assim, pode-se igualmente supor – em resposta à pergunta de por que os seres humanos podem ter capacidade de cooperar – que o que possibilita aos seres humanos terem essa capacidade é a mesma coisa que os constitui como seres realmente humanos. Se é uma questão de preferência na escolha de que suposição tomar, há muitas razões indicando que deve-se preferir a última, inclusive por ser mais conforme a um comportamento universalmente observado de haver tanta cooperação espontânea no mundo real, que não poderia haver, com a freqüência observada, caso o ser humano fosse inerentemente competitivo.
Ao investigar seriamente as origens da cooperação, nos damos conta de que uma teoria do capital social é, pelo menos no que tange aos seus pressupostos, uma teoria do humano.
Talvez ninguém tenha desenvolvido isso tão bem como o biólogo chileno Humberto Maturana Romesin. Para fazer frente tanto às simplificações dos economistas – que comparecem em quantidade não desprezível quando se trata de justificar por que o humano tem de ser constitutivamente ou “geneticamente” competitivo – quanto para ter uma espécie de antídoto contra tais idéias perversas, desses e de outros – como os sociobiólogos –, deve-se reconstruir uma teoria da cooperação. E, na minha opinião, pode-se e deve-se fazer isso cientificamente; por exemplo, a partir de Maturana.
Os fundamentos da maioria das abordagens teóricas do capital social estão construídos sobre um terreno de pressupostos que quase nunca estão explícitos. Tais pressupostos, entretanto, existem. São pressupostos filosófico-antropológicos, que tomam suas matrizes conceituais, em geral, de empréstimo de outras ciências, como a biologia e a biologia da evolução, formulando, então, metahipóteses sociológicas (na verdade, diriam alguns, sub-sociológicas) a partir das hipóteses aventadas para explicar o funcionamento de organismos ou de partes de organismos (como o cérebro humano) ou para explicar comportamentos animais (como o dos chimpanzés). E não é possível analisar os fundamentos do conceito de capital social sem desvelá-los.
A tarefa de desvelar os pressupostos do conceito de capital social não é trivial, porquanto envolve elementos teóricos de procedências distintas e status diverso: assertivas tomadas axiomaticamente por sistemas (ou discursos) filosóficos, do tipo “o homem é um animal político” (Aristóteles); conclusões deslizadas da biologia para a antropologia social, como: “os seres humanos cooperam para competir” (Alexander, 1990); especulações com as teorias da evolução – por exemplo, sobre a existência de uma “natureza humana” –, que, supostamente, indicariam que o capital social “tende a ser gerado de forma instintiva pelos seres humanos” (Fukuyama, 1999); além, é claro, de todas as crenças morais (e imorais) subsumidas em teorias econômicas, como a de que não é possível explicar o comportamento de grupos, a não ser em termos dos interesses dos indivíduos e de que estes interesses são basicamente egoístas.
Os subdiscursos axiológico-normativos dos economistas, se se pode falar assim, não são os melhores exemplos de ocultamento de pressupostos, de vez que chegam a confundir-se com seus discursos, dando a impressão de que as teorias econômicas são, afinal, teorias morais (e, com freqüência, imorais). Isso fica claríssimo, por exemplo, nas críticas ao socialismo de Ludwig von Mises (1981) e Friedrich Hayek (1988). Mas, quando não se pode falar assim, como no caso da teoria econômica dos jogos e outras teorias baseadas na rational choice, constituem então os melhores exemplos de transposições mecânicas de noções de um âmbito teórico para outro, sem muita cerimônia semântica, sem muita consideração epistemológica pelos estatutos próprios dos diversos campos de conhecimento trafegados e, enfim, sem muito respeito pela natureza do objeto do conhecimento (ou pela natureza dos conhecimentos sobre o objeto) em questão: o ser humano ou os conjuntos de seres humanos.
Assim, o ser humano é tratado, por exemplo, na teoria econômica dos jogos, como um ser puramente racional e não como um ser emocional-racional – o que justifica os limites das explicações que alguns economistas fornecem para a solução dos chamados dilemas da ação coletiva. Com efeito, diante do dilema do prisioneiro, os seres humanos em geral, quer dizer, majoritariamente, na maioria das culturas, não escolhem, com tanta freqüência, a opção que seria racionalmente a mais vantajosa para si como indivíduos, porquanto trapacear não é uma opção emocionalmente confortável.
É tão simples como isso, mas os economistas “freqüentemente expressam surpresa pelo fato de haver tanta cooperação no mundo, uma vez que a teoria dos jogos sugere que as soluções cooperativas são, muitas vezes, difíceis de obter... [e continuam tendo grandes] dificuldades para explicar por que tantas pessoas votam, fazem doações a entidades caritativas ou permanecem leais aos seus empregadores, porque seus modelos de comportamento egoísta sugerem que é irracional fazer isso” (Fukuyama, 1999: 172). Por que – deve-se perguntar –, se “todo mundo sabe”, inclusive os economistas, que os seres humanos são sociáveis e são recompensados emocionalmente pelo reconhecimento social que advém do exercício da colaboração? Talvez essas dificuldades provenham de outro campo, não propriamente da teoria científica, mas da ideologia embutida na teoria, na visão que precisa ser impingida para aumentar a verosimilhança do discurso. De fato, o pressuposto básico da competição tem de estar presente para o esquema explicativo funcionar, legitimando (e contribuindo para reproduzir) um mundo de competição em que a explicação, então, funcione, garantindo o status sacerdotal daqueles que o explicam. Mas, justiça seja feita, tal comportamento não é privilégio de economistas – é o que atestam, por exemplo, outras perversões, vale lembrar: a sociologia de Garret Hardin, a sociobiologia de Edward Wilson e a antropologia de Robert Ardrey – como tão bem mostrou William Irwin Thompson (1987: 23).
Na verdade, a teoria econômica dos jogos não é bem humana, não por ser uma teoria matemática ou matematizada, mas – no sentido de que é uma teoria indevidamente transposta para o campo das ciências humanas – por não se aplicar aos seres humanos reais e sim a seres humanos idealizados, cujos cérebros funcionam como CPUs de computador.
A capacidade de produzir capital social é constituída, fundamentalmente, pela capacidade que tem o ser humano de colaborar ou de cooperar com outros seres humanos. O último termo é melhor por ser mais abrangente: “co-laborar” evoca a noção de trabalho conjunto, enquanto que “co-operar” se refere a quaisquer (oper)ações conjuntas, algumas delas fundamentais porquanto constitutivas do humano, como é o caso, por exemplo, na visão de Humberto Maturana (1988a), compartilhada aqui, do “con-versar”. Para descobrir de onde vem esta “capacidade”, é preciso, pois, investigar as origens humano-sociais da cooperação.
Muito bem. Mas o que leva os seres humanos a cooperar? Essa pergunta precisa ser respondida, se quisermos continuar trabalhando com o conceito de “Capital Social”. Em outras palavras: uma teoria do capital social pressupõe uma teoria da cooperação.
Dizendo ainda de outra maneira: qualquer teoria do capital social é, no que tange aos seus pressupostos, uma teoria da cooperação. A teoria biológica do fenômeno social – uma espécie de anti-sociobiologia e de contra-social-darwinismo –, desenvolvida pelo biólogo Humberto Maturana, pode fornecer a base para uma teoria da cooperação humana que melhor corresponda à noção de capital social.
Porém, a tarefa de extrair das idéias de Maturanauma teoria compreensível da cooperação não é trivial, porquanto tais idéias ainda estão imersas em certa obscuridade. Além disso, as inovadoras abordagens de Maturana apresentam uma estrutura conceitual bem mais complexa do que as dos esforços mais conhecidos da investigação contemporânea sobre as origens da cooperação (e/ou da competição) realizados por antropólogos, sociólogos, psicólogos e mesmo por biólogos que trabalham com teorias da evolução. Ou seja, o debate atual sobre o tema não abriu espaço para uma análise mais ampliada das idéias de Humberto Maturana e, assim, não ensejou sua passagem pelas peneiras das múltiplas interpretações, que acabam, às vezes,“domesticando”, mas também aclarando, simplificando e ubicando os conceitos dentro de marcos teóricos mais amigáveis.
A conclusão a que cheguei é a seguinte. Há uma teoria da cooperação implícita nos escritos de Maturana, cujos elementos principais, apenas elencados em três conjuntos, de modo não axiomático, são estes:

Primeiro conjunto: a cooperação está na constituição do humano.
1 - O que nos torna humanos é a linguagem.
2 - Não é, fundamentalmente, o tamanho do cérebro o que torna possível a linguagem, e, sim, o modo de conviver.
3 - O modo de conviver que torna possível a linguagem jamais se teria conservado sem uma forte emoção amistosa capaz de permitir a intimidade na convivência com certa permanência.
4 - Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas, em que haja aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações de ações, não se pode esperar que surja a linguagem.
5 - A linguagem só pode surgir na cooperação.
6 - A cooperação está na constituição do humano.

Segundo conjunto: a cooperação está na fundação do social.
1 - Só há sistema social se houver recorrência de interações que resultem na coordenação condutual dos seres vivos que o compõem, quando tal recorrência de interações passa a ser um mecanismo mediante o qual esses seres vivos realizam sua autopoiesis.
2 - A cooperação se dá em todas as relações sociais.
3 - Nem todas as relações humanas são sociais, tampouco o são todas as coletividades humanas, porque nem todas se fundam na operacionalidade da aceitação mútua.
4 - Distintas emoções especificam distintos domínios de ações.
5 - Coletividades humanas fundadas em emoções não centradas na emoção amistosa que permite a intimidade na convivência com certa permanência – ou o ser com o outro – estarão constituídas em outros domínios de ações que não o da cooperação e do compartilhamento – em coordenações de ações que implicam a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência – e não serão comunidades sociais.
6 - A cooperação não se dá nas relações de dominação e submissão; a obediência não é um ato de cooperação.
7 - Afirmamos que o indivíduo humano se realiza na defesa competitiva de seus interesses porque não nos damos conta de que toda individualidade é social e só se realiza quando inclui cooperativamente em seus interesses os interesses dos outros seres humanos que a sustentam.

Terceiro conjunto: a competição não funda o social nem constitui o humano.
1 - Não existe, biologicamente falando, contradição entre o social e o individual. Toda a contradição que a humanidade vive nesse domínio é de origem cultural.
2 - A conduta social está fundada na cooperação e não na competição.
3 - O fenômeno da competição é cultural.
4 - A cultura patriarcal nega a colaboração.
5 - A cultura patriarcal se caracteriza pela conservação de um modo de coexistência que valoriza a competição.
6 - O fenômeno da competição não se dá no âmbito biológico.
7 - Seres vivos não humanos não competem.
8 - Se dois animais se encontram diante de um alimento e somente um come, isso não é competição, porque não é central para o que se passa com o que come o fato de que o outro não coma. No âmbito humano, ao contrário, , a competição constitui-se culturalmente quando o fato de que outro não obtenha o que alguém obtém é fundamental para constituir o modo de relação.
9 - O ato de compartilhar alimentos – uma forma de colaboração –, que está evolutivamente na origem do humano, não consiste em deixar que o outro coma a seu lado e, sim, em transferir o que se tem para o outro.
10 - A competição tem ganhadores e perdedores. A competição é ganha quando o outro fracassa diante de nós, e se constitui (em escala ampliada) quando a perspectiva de que isso ocorra de fato torna-se culturalmente desejável.
11 - A competição não participa da evolução do humano, que se dá pela conservação de um fenótipo ontogênico ou um modo de vida no qual o linguagear pode surgir.
12 - A linguagem não poderia ter surgido na competição.
13 - A competição não pode ser constitutiva do humano.
Nas páginas seguintes, vamos situar os três conjuntos de assertivas expostos acima no contexto das elaborações teóricas de Humberto Maturana.

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