Reconhecer que a competição existe nas sociedades humanas nada tem a ver com pregar a sua imanência ou a sua inexorabilidade, ou especular sobre sua possível fonte biológica ou genética.
Argumenta-se, freqüentemente, que o mundo natural é um campo de luta pela vida. Se o mundo natural é um campo de luta pela vida (struggle for life), então seria “natural” pensar que o mundo social também o é? O darwinismo social e um pouco também o neo-darwinismo (como, aliás, qualquer darwinismo, em que pesem os esforços ingentes de vários bem-intencionados pesquisadores contemporâneos de “salvar” Darwin, dizendo que ele nunca disse “isso” ou “aquilo” – mais ou menos assim como se tentou, durante décadas, livrar Lenin das conseqüências maléficas dos sistemas políticos implantados por seus seguidores) induzem a uma resposta afirmativa a esta questão. O problema não é tomar a biologia como geratriz de comportamentos sociais, o que, sob certo aspecto, é inevitável, uma vez que o homem é um ser biológico basicamente. O problema está no tipo de biologia que se toma. Desse ponto de vista, todo darwinismo é social, na medida em que foi o comportamento social, observado num tipo de sociedade, que levou Darwin e seus seguidores a inferir um comportamento natural, ou melhor, a interpretar o comportamento natural em termos de luta. A sociedade inglesa, sob o influxo do emergente mercado capitalista, apresentava-se, de fato, como um campo de luta generalizado e até certo ponto selvagem (aliás, a expressão “capitalismo selvagem” tem tudo a ver com isso). Pelo que se pode depreender, a “lei da selva” não saiu da selva para a “praça do mercado”, mas, ao contrário, da segunda para a primeira como, aliás, já havia reconhecido Marx em 1862.
Matt Ridley resume de maneira brilhante: “Thomas Hobbes foi o antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta. Hobbes (1651) gerou David Hume (1739), que gerou Adam Smith (1776), que gerou Thomas Robert Malthus (1798), que gerou Charles Darwin (1859). Foi depois de ler Malthus que Darwin deixou de pensar sobre competição entre grupos e passou a pensar sobre competição entre indivíduos, mudança que Smith fizera um século antes. O diagnóstico hobbesiano – embora não a receita – ainda está no centro tanto da economia quanto da biologia evolutiva moderna (Smith gerou Friedman; Darwin gerou Dawkins). Na raiz das duas disciplinas está a noção de que, se o equilíbrio da natureza não foi projetado de cima, mas surgiu de baixo, não há motivo para pensar que se trata de um todo harmonioso. Mais tarde, John Maynard Keynes diria que A origem das espécies é ‘simples economia ricardiana expressa em linguagem científica’. E Stephen Jay Gould disse que a seleção natural ‘era essencialmente a economia de Adam Smith vista na natureza’. Karl Marx fez mais ou menos a mesma observação: ‘É notável’, escreve ele a Friedrich Engels, em junho de 1862, ‘como Darwin reconhece, entre os animais e as plantas, a própria sociedade inglesa à qual pertence, com sua divisão de trabalho, competição, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a luta malthusiana pela existência. É a bellum omnium contra omnes de Hobbes’” (Ridley, 1996: 284-5).
Na verdade, a raiz do problema está nos pressupostos que tomamos: no caso da contraposição competição x cooperação, no tipo de biologia da evolução a que recorremos para construir nossos modelos de comportamento social. Como a teoria oficial da evolução – ainda ensinada em quase todas as escolas do mundo – é o neodarwinismo, acabamos importando pressupostos não-cooperativos para as nossas ciências sociais. O neodarwinismo, como se sabe, é resultado de uma combinação das idéias originais de Darwin sobre as mudanças evolutivas graduais com as descobertas de Mandel sobre a estabilidade genética. “De acordo com a teoria neodarwinista, toda variação evolutiva resulta de mutação aleatória – isto é, de mudanças genéticas aleatórias – seguida por seleção natural” (Capra, 1996: 180). Mas o neodarwinismo não é a única teoria existente. Existe também a teoria da endossimbiose seqüencial de Lynn Margulis, para quem “o neodarwinismo é fundamentalmente falho, não somente pelo fato de se basear em conceitos reducionistas, que hoje estão obsoletos, mas também porque foi formulado numa linguagem matemática inapropriada... [a linguagem] da tradição zoológica... [acostumada] a lidar apenas com uma parte pequena e relativamente recente da história da evolução. Pesquisas atuais em microbiologia indicam vigorosamente que os principais caminhos para a criatividade da evolução foram desenvolvidos muito tempo antes que os animais entrassem em cena” (Idem: 181) (n. i.).
Para Margulis, a simbiose (“a tendência de diferentes organismos para viver em estreita associação uns com os outros e, com freqüência, dentro uns dos outros, como as bactérias em nossos intestinos”) cumpre um papel fundamental na evolução: “simbioses de longa duração, envolvendo bactérias e outros microorganismos que vivem dentro de células maiores, levaram, e continuam a levar, a novas formas de vida... [Assim, ela] vê a criação de novas formas de vida por meio de arranjos simbióticos permanentes como o principal caminho de evolução para todos os organismos superiores” (Capra, 1996: 185) (n. i.).
Examinemos o que diz a própria Margulis. “A simbiose, termo cunhado pelo botânico alemão Anton deBary em 1873, é a convivência de tipos muito diferentes de organismos; deBary, na verdade, a definiu como a ‘convivência de organismos de nomes diferentes’. Em certos casos, a coabitação, existência a longo prazo, resulta em simbiogênese: o surgimento de novos corpos, novos órgãos, novas espécies. Em suma, acredito que a maior parte da inovação evolutiva surgiu, e ainda surge, diretamente da simbiose. Essa não é a noção mais comum presente na maioria dos livros didáticos quanto à base da mudança evolutiva.
A simbiogênese, idéia proposta pelo russo Konstantin Merezhkovsky (1855-1921), refere-se à formação de novos órgãos e organismos por meio de incorporações simbióticas... esse é um fato fundamental na evolução. Todos os organismos grandes o bastante para que possamos vê-los são compostos de micróbios antes independentes, agrupados para formar totalidades maiores. Ao se fundir, muitos perderam o que, em retrospecto, reconhecemos como sua antiga individualidade... Creio que já consegui convencer muitos cientistas e estudantes de que partes das células, as organelas, surgiram simbiogeneticamente, como consequência de diferentes simbioses permanentes... Atualmente, trabalho na expansão da teoria, para mostrar que organismos maiores, com seus novos órgãos e novos sistemas de órgãos, também evoluíram pela simbiogênese. Se os simbiontes se fundem por completo, se eles se incorporam e formam um novo tipo de ser, o novo ‘indivíduo’, o resultado da fusão, por definição, evoluiu por simbiogênese. Embora o conceito de simbiogênese tenha sido proposto há um século, somente agora dispomos das ferramentas para testar a teoria com rigor” (Margulis, 1998: 38.9).
Para Margulis, “a simbiogênese foi a lua que puxou a maré da vida de suas profundezas oceânicas para a terra seca e para o ar... Se as pessoas um dia viajarem por longos períodos pelo espaço, a aventura nunca será tão artificial e estéril quanto em Jornada nas estrelas. A visão da engenharia asséptica nos libertando de nossos companheiros de planeta não é apenas insossa e tediosa, mas toca as raias do revoltante. Não importa o quanto nossa espécie nos preocupe, a vida é um sistema muito mais amplo. A vida é uma interdependência incrivelmente complexa de matéria e energia entre milhões de espécies fora (e dentro) de nossa própria pele. Esses estranhos da Terra são nossos parentes, nossos ancestrais, e parte de nós. Eles reciclam nossa matéria e nos trazem água e alimento. Não sobrevivemos sem ‘o outro’. Nosso passado simbiótico, interativo e interdependente, é interligado por águas agitadas” (Margulis, 1998: 106) (n. g.).
Embora Lynn Margulis esteja se referindo a processos estritamente biológicos – e por isso mesmo –, a idéia de que, na natureza, “não sobrevivemos sem o outro” (ou seja, de que só sobrevivemos com-o-outro) inspira ao pensamento social pressupostos radicalmente opostos àqueles que são sugeridos pela idéia de que, para sobreviver, temos de, de algum modo, vencer o outro (isto é, ultrapassá-lo evolutivamente por melhor adaptação).
Por isso, tem razão Fritjof Capra quando assinala que “a teoria da simbiogênese implica uma mudança radical de percepção no pensamento evolutivo. Enquanto a teoria convencional concebe o desdobramento da vida como um processo no qual as espécies apenas divergem uma da outra, Lynn Margulis alega que a formação de novas entidades compostas por meio da simbiose de organismos antes independentes tem sido a mais poderosa e mais importante das forças da evolução. Essa nova visão tem forçado biólogos a reconhecer a importância vital da cooperação no processo evolutivo. Os darwinistas sociais do século XIX viam somente competição na natureza – “a natureza, vermelha em dentes e em garras”, como se expressou o poeta Tennyson –, mas agora estamos começando a reconhecer a cooperação contínua e a dependência mútua entre todas as formas de vida como aspectos centrais da evolução. Nas palavras de Margulis e de Sagan: ‘A vida não se apossa do globo pelo combate, mas sim, pela formação de redes’ [Margulis e Sagan, 1986: 15]” (Capra, 1996: 185) (n. i.) (n. g.).
Se nossos antropólogos, sociólogos e economistas passassem a tomar como referência a produção, por exemplo, de Margulis, Maturana ou Gould, ao invés de Darwin e seus seguidores, Wilson ou Dawkins; ou seja, se tomassem como pressupostos outras biologias da evolução, é muito provável que fizessem outro tipo de ciência social e econômica e que, assim, suas interpretações do que ocorre na natureza não fossem tão projetivas do que observam na sociedade mercantil.
Quando seres não humanos chocam-se entre si no seu processo de aceder a recursos sobrevivenciais ou reprodutivos – mesmo que uns devorem ou matem os outros – isso não é um duelo, uma guerra, uma competição em termos humanos, porque, em 99,999...9% dos casos, não há um “átomo de interesse” envolvido em disputa, não há auto-asserção egóica, não há a emoção de se comprazer no ato de privar o outro dos recursos necessários à sua subsistência ou de aniquilá-lo, não há assassinato ou, se houver, como se diz que há no caso de certos primatas (os 0,00...1%), essa emoção não é constitutiva do seu viver coletivo, a não ser que, por alguma razão (em geral, não por acaso, o contato com humanos civilizados), tenha se estabelecido uma incongruência com o meio, o que acabará levando tal espécie ou linhagem à extinção, em virtude da impossibilidade de realização da sua autopoiese. Todos os choques entre seres não humanos são, como reconheceu Maturana, resultados de processos coletivos de realização de autopoiese, coreografias da dança estrutural que permite a manutenção e a reprodução de espécies e linhagens em congruências múltiplas e recíprocas com o meio.
Os darwinismos são sociais porque decalcam a biologia da sociologia desse tipo de sociedade em que vivemos e, nesse tipo de sociedade (do padrão civilizatório patriarcal), sempre haverá competição, em algum grau, em todas as esferas da realidade humano-social. A conclusão é a de que não há como restringir a competição à esfera do mercado, porque não há como desvencilhar a competição do ser humano realmente existente, na medida em que somos, em parte, culturalmente construídos segundo um padrão que se tem transmitido, de modo não-genético, geração após geração (pelo menos nos últimos seis mil anos). O que não quer dizer que não possa haver graus maiores de cooperação e/ou graus menores de competição nas sociedades atuais. Nem quer dizer que uma “lógica” competitiva (como, por exemplo, a do mercado) deva, necessariamente, prevalecer nas sociedades civis e nos governos das sociedades realmente existentes no mundo de hoje (como preconiza a ideologia dita neoliberal e outras teorias sub-liberais esposadas por grande parte dos economistas hodiernos).
As teorias do capital social, pelo contrário, argumentam que graus maiores de cooperação são mais favoráveis ao desenvolvimento das sociedades humanas. Ao fazer isso, pressupõem que o desenvolvimento social é condição para o desenvolvimento, de diversos pontos de vista sob os quais entendem o termo “desenvolvimento”, inclusive quando consideram apenas o desenvolvimento econômico. As teorias do capital aocial não são teorias para uma sociedade que não existe, mas para as sociedades realmente existentes, as quais, embora manifestem, em maior ou menor grau, uma racionalidade competitiva em todas as suas esferas, também são pervadidas, em maior ou menor grau, por uma racionalidade (e por uma emocionalidade!) cooperativa. Então, as teorias do capital social dizem o seguinte: quanto maior for o exercício social da cooperação, mais condições terá uma sociedade de se desenvolver socialmente e, por conseguinte, mais condições terá de ensejar a dinamização das potencialidades e a actualização das capacidades das pessoas que a compõem – o que redunda numa maior capacidade de realizar bons governos e de prosperar economicamente.
Num certo sentido, isso vai contra a crença, hoje bastante generalizada, de que, quanto maior o grau de enraizamento e de abrangência de uma racionalidade competitiva, mais condições terá uma sociedade de dinamizar sua economia, de crescer e, como conseqüência, de melhorar as condições de vida de suas populações. Mas essa crença é meio estúpida – de vez que quem dinamiza a economia não é o capital físico ou financeiro, enquanto coisas, entes objetiváveis independentemente das relações sociais que os constituem, mas a qualidade das relações entre as pessoas; e de vez que a qualidade dessas relações depende das capacidades das pessoas e do ambiente em que estas pessoas se relacionam – o qual deve fornecer uma base de confiança para que se possa efetivar qualquer relação economicamente viável e um lastro de cooperação para que possam tornar-se economicamente favoráveis seus resultados (reduzindo-se, por exemplo, as margens de incerteza e os custos de transação).
Argumenta-se, freqüentemente, que o mundo natural é um campo de luta pela vida. Se o mundo natural é um campo de luta pela vida (struggle for life), então seria “natural” pensar que o mundo social também o é? O darwinismo social e um pouco também o neo-darwinismo (como, aliás, qualquer darwinismo, em que pesem os esforços ingentes de vários bem-intencionados pesquisadores contemporâneos de “salvar” Darwin, dizendo que ele nunca disse “isso” ou “aquilo” – mais ou menos assim como se tentou, durante décadas, livrar Lenin das conseqüências maléficas dos sistemas políticos implantados por seus seguidores) induzem a uma resposta afirmativa a esta questão. O problema não é tomar a biologia como geratriz de comportamentos sociais, o que, sob certo aspecto, é inevitável, uma vez que o homem é um ser biológico basicamente. O problema está no tipo de biologia que se toma. Desse ponto de vista, todo darwinismo é social, na medida em que foi o comportamento social, observado num tipo de sociedade, que levou Darwin e seus seguidores a inferir um comportamento natural, ou melhor, a interpretar o comportamento natural em termos de luta. A sociedade inglesa, sob o influxo do emergente mercado capitalista, apresentava-se, de fato, como um campo de luta generalizado e até certo ponto selvagem (aliás, a expressão “capitalismo selvagem” tem tudo a ver com isso). Pelo que se pode depreender, a “lei da selva” não saiu da selva para a “praça do mercado”, mas, ao contrário, da segunda para a primeira como, aliás, já havia reconhecido Marx em 1862.
Matt Ridley resume de maneira brilhante: “Thomas Hobbes foi o antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta. Hobbes (1651) gerou David Hume (1739), que gerou Adam Smith (1776), que gerou Thomas Robert Malthus (1798), que gerou Charles Darwin (1859). Foi depois de ler Malthus que Darwin deixou de pensar sobre competição entre grupos e passou a pensar sobre competição entre indivíduos, mudança que Smith fizera um século antes. O diagnóstico hobbesiano – embora não a receita – ainda está no centro tanto da economia quanto da biologia evolutiva moderna (Smith gerou Friedman; Darwin gerou Dawkins). Na raiz das duas disciplinas está a noção de que, se o equilíbrio da natureza não foi projetado de cima, mas surgiu de baixo, não há motivo para pensar que se trata de um todo harmonioso. Mais tarde, John Maynard Keynes diria que A origem das espécies é ‘simples economia ricardiana expressa em linguagem científica’. E Stephen Jay Gould disse que a seleção natural ‘era essencialmente a economia de Adam Smith vista na natureza’. Karl Marx fez mais ou menos a mesma observação: ‘É notável’, escreve ele a Friedrich Engels, em junho de 1862, ‘como Darwin reconhece, entre os animais e as plantas, a própria sociedade inglesa à qual pertence, com sua divisão de trabalho, competição, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a luta malthusiana pela existência. É a bellum omnium contra omnes de Hobbes’” (Ridley, 1996: 284-5).
Na verdade, a raiz do problema está nos pressupostos que tomamos: no caso da contraposição competição x cooperação, no tipo de biologia da evolução a que recorremos para construir nossos modelos de comportamento social. Como a teoria oficial da evolução – ainda ensinada em quase todas as escolas do mundo – é o neodarwinismo, acabamos importando pressupostos não-cooperativos para as nossas ciências sociais. O neodarwinismo, como se sabe, é resultado de uma combinação das idéias originais de Darwin sobre as mudanças evolutivas graduais com as descobertas de Mandel sobre a estabilidade genética. “De acordo com a teoria neodarwinista, toda variação evolutiva resulta de mutação aleatória – isto é, de mudanças genéticas aleatórias – seguida por seleção natural” (Capra, 1996: 180). Mas o neodarwinismo não é a única teoria existente. Existe também a teoria da endossimbiose seqüencial de Lynn Margulis, para quem “o neodarwinismo é fundamentalmente falho, não somente pelo fato de se basear em conceitos reducionistas, que hoje estão obsoletos, mas também porque foi formulado numa linguagem matemática inapropriada... [a linguagem] da tradição zoológica... [acostumada] a lidar apenas com uma parte pequena e relativamente recente da história da evolução. Pesquisas atuais em microbiologia indicam vigorosamente que os principais caminhos para a criatividade da evolução foram desenvolvidos muito tempo antes que os animais entrassem em cena” (Idem: 181) (n. i.).
Para Margulis, a simbiose (“a tendência de diferentes organismos para viver em estreita associação uns com os outros e, com freqüência, dentro uns dos outros, como as bactérias em nossos intestinos”) cumpre um papel fundamental na evolução: “simbioses de longa duração, envolvendo bactérias e outros microorganismos que vivem dentro de células maiores, levaram, e continuam a levar, a novas formas de vida... [Assim, ela] vê a criação de novas formas de vida por meio de arranjos simbióticos permanentes como o principal caminho de evolução para todos os organismos superiores” (Capra, 1996: 185) (n. i.).
Examinemos o que diz a própria Margulis. “A simbiose, termo cunhado pelo botânico alemão Anton deBary em 1873, é a convivência de tipos muito diferentes de organismos; deBary, na verdade, a definiu como a ‘convivência de organismos de nomes diferentes’. Em certos casos, a coabitação, existência a longo prazo, resulta em simbiogênese: o surgimento de novos corpos, novos órgãos, novas espécies. Em suma, acredito que a maior parte da inovação evolutiva surgiu, e ainda surge, diretamente da simbiose. Essa não é a noção mais comum presente na maioria dos livros didáticos quanto à base da mudança evolutiva.
A simbiogênese, idéia proposta pelo russo Konstantin Merezhkovsky (1855-1921), refere-se à formação de novos órgãos e organismos por meio de incorporações simbióticas... esse é um fato fundamental na evolução. Todos os organismos grandes o bastante para que possamos vê-los são compostos de micróbios antes independentes, agrupados para formar totalidades maiores. Ao se fundir, muitos perderam o que, em retrospecto, reconhecemos como sua antiga individualidade... Creio que já consegui convencer muitos cientistas e estudantes de que partes das células, as organelas, surgiram simbiogeneticamente, como consequência de diferentes simbioses permanentes... Atualmente, trabalho na expansão da teoria, para mostrar que organismos maiores, com seus novos órgãos e novos sistemas de órgãos, também evoluíram pela simbiogênese. Se os simbiontes se fundem por completo, se eles se incorporam e formam um novo tipo de ser, o novo ‘indivíduo’, o resultado da fusão, por definição, evoluiu por simbiogênese. Embora o conceito de simbiogênese tenha sido proposto há um século, somente agora dispomos das ferramentas para testar a teoria com rigor” (Margulis, 1998: 38.9).
Para Margulis, “a simbiogênese foi a lua que puxou a maré da vida de suas profundezas oceânicas para a terra seca e para o ar... Se as pessoas um dia viajarem por longos períodos pelo espaço, a aventura nunca será tão artificial e estéril quanto em Jornada nas estrelas. A visão da engenharia asséptica nos libertando de nossos companheiros de planeta não é apenas insossa e tediosa, mas toca as raias do revoltante. Não importa o quanto nossa espécie nos preocupe, a vida é um sistema muito mais amplo. A vida é uma interdependência incrivelmente complexa de matéria e energia entre milhões de espécies fora (e dentro) de nossa própria pele. Esses estranhos da Terra são nossos parentes, nossos ancestrais, e parte de nós. Eles reciclam nossa matéria e nos trazem água e alimento. Não sobrevivemos sem ‘o outro’. Nosso passado simbiótico, interativo e interdependente, é interligado por águas agitadas” (Margulis, 1998: 106) (n. g.).
Embora Lynn Margulis esteja se referindo a processos estritamente biológicos – e por isso mesmo –, a idéia de que, na natureza, “não sobrevivemos sem o outro” (ou seja, de que só sobrevivemos com-o-outro) inspira ao pensamento social pressupostos radicalmente opostos àqueles que são sugeridos pela idéia de que, para sobreviver, temos de, de algum modo, vencer o outro (isto é, ultrapassá-lo evolutivamente por melhor adaptação).
Por isso, tem razão Fritjof Capra quando assinala que “a teoria da simbiogênese implica uma mudança radical de percepção no pensamento evolutivo. Enquanto a teoria convencional concebe o desdobramento da vida como um processo no qual as espécies apenas divergem uma da outra, Lynn Margulis alega que a formação de novas entidades compostas por meio da simbiose de organismos antes independentes tem sido a mais poderosa e mais importante das forças da evolução. Essa nova visão tem forçado biólogos a reconhecer a importância vital da cooperação no processo evolutivo. Os darwinistas sociais do século XIX viam somente competição na natureza – “a natureza, vermelha em dentes e em garras”, como se expressou o poeta Tennyson –, mas agora estamos começando a reconhecer a cooperação contínua e a dependência mútua entre todas as formas de vida como aspectos centrais da evolução. Nas palavras de Margulis e de Sagan: ‘A vida não se apossa do globo pelo combate, mas sim, pela formação de redes’ [Margulis e Sagan, 1986: 15]” (Capra, 1996: 185) (n. i.) (n. g.).
Se nossos antropólogos, sociólogos e economistas passassem a tomar como referência a produção, por exemplo, de Margulis, Maturana ou Gould, ao invés de Darwin e seus seguidores, Wilson ou Dawkins; ou seja, se tomassem como pressupostos outras biologias da evolução, é muito provável que fizessem outro tipo de ciência social e econômica e que, assim, suas interpretações do que ocorre na natureza não fossem tão projetivas do que observam na sociedade mercantil.
Quando seres não humanos chocam-se entre si no seu processo de aceder a recursos sobrevivenciais ou reprodutivos – mesmo que uns devorem ou matem os outros – isso não é um duelo, uma guerra, uma competição em termos humanos, porque, em 99,999...9% dos casos, não há um “átomo de interesse” envolvido em disputa, não há auto-asserção egóica, não há a emoção de se comprazer no ato de privar o outro dos recursos necessários à sua subsistência ou de aniquilá-lo, não há assassinato ou, se houver, como se diz que há no caso de certos primatas (os 0,00...1%), essa emoção não é constitutiva do seu viver coletivo, a não ser que, por alguma razão (em geral, não por acaso, o contato com humanos civilizados), tenha se estabelecido uma incongruência com o meio, o que acabará levando tal espécie ou linhagem à extinção, em virtude da impossibilidade de realização da sua autopoiese. Todos os choques entre seres não humanos são, como reconheceu Maturana, resultados de processos coletivos de realização de autopoiese, coreografias da dança estrutural que permite a manutenção e a reprodução de espécies e linhagens em congruências múltiplas e recíprocas com o meio.
Os darwinismos são sociais porque decalcam a biologia da sociologia desse tipo de sociedade em que vivemos e, nesse tipo de sociedade (do padrão civilizatório patriarcal), sempre haverá competição, em algum grau, em todas as esferas da realidade humano-social. A conclusão é a de que não há como restringir a competição à esfera do mercado, porque não há como desvencilhar a competição do ser humano realmente existente, na medida em que somos, em parte, culturalmente construídos segundo um padrão que se tem transmitido, de modo não-genético, geração após geração (pelo menos nos últimos seis mil anos). O que não quer dizer que não possa haver graus maiores de cooperação e/ou graus menores de competição nas sociedades atuais. Nem quer dizer que uma “lógica” competitiva (como, por exemplo, a do mercado) deva, necessariamente, prevalecer nas sociedades civis e nos governos das sociedades realmente existentes no mundo de hoje (como preconiza a ideologia dita neoliberal e outras teorias sub-liberais esposadas por grande parte dos economistas hodiernos).
As teorias do capital social, pelo contrário, argumentam que graus maiores de cooperação são mais favoráveis ao desenvolvimento das sociedades humanas. Ao fazer isso, pressupõem que o desenvolvimento social é condição para o desenvolvimento, de diversos pontos de vista sob os quais entendem o termo “desenvolvimento”, inclusive quando consideram apenas o desenvolvimento econômico. As teorias do capital aocial não são teorias para uma sociedade que não existe, mas para as sociedades realmente existentes, as quais, embora manifestem, em maior ou menor grau, uma racionalidade competitiva em todas as suas esferas, também são pervadidas, em maior ou menor grau, por uma racionalidade (e por uma emocionalidade!) cooperativa. Então, as teorias do capital social dizem o seguinte: quanto maior for o exercício social da cooperação, mais condições terá uma sociedade de se desenvolver socialmente e, por conseguinte, mais condições terá de ensejar a dinamização das potencialidades e a actualização das capacidades das pessoas que a compõem – o que redunda numa maior capacidade de realizar bons governos e de prosperar economicamente.
Num certo sentido, isso vai contra a crença, hoje bastante generalizada, de que, quanto maior o grau de enraizamento e de abrangência de uma racionalidade competitiva, mais condições terá uma sociedade de dinamizar sua economia, de crescer e, como conseqüência, de melhorar as condições de vida de suas populações. Mas essa crença é meio estúpida – de vez que quem dinamiza a economia não é o capital físico ou financeiro, enquanto coisas, entes objetiváveis independentemente das relações sociais que os constituem, mas a qualidade das relações entre as pessoas; e de vez que a qualidade dessas relações depende das capacidades das pessoas e do ambiente em que estas pessoas se relacionam – o qual deve fornecer uma base de confiança para que se possa efetivar qualquer relação economicamente viável e um lastro de cooperação para que possam tornar-se economicamente favoráveis seus resultados (reduzindo-se, por exemplo, as margens de incerteza e os custos de transação).
Um comentário:
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