A resposta de Maturana está baseada numa hipótese já conhecida, de investigadores heterodoxos como Riane Eisler (1987) e Ralph Abraham (1989), baseada, em geral, na pesquisa arqueológica de Marija Gimbutas (1991) – mas que também foi aventada, conquanto apenas tangencialmente, por teóricos do capital social, como Robert Putnam – sobre a existência de grandes tipos, digamos, civilizatórios (macro-culturais) de sociedades: por exemplo, sociedades de dominação e sociedades de parceria (3). Segundo algumas versões desta hipótese, estaríamos vivendo hoje – e nos últimos cinco ou seis mil anos – imersos em um tipo macro-cultural de padrão civilizatório de dominação que nega a colaboração: a cultura patriarcal, caracterizada pela conservação de “um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação dos recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade” (Maturana, 1993: 24).
Para compreender corretamente a hipótese de Maturana, temos de retomar o seu conceito de “redes de conversações”. Recordemos que Maturana chama de conversar o entrelaçamento do linguagear com o emocionar e sustenta que todo viver humano se dá em redes de conversações. Pois bem, “uma cultura é uma rede fechada de conversações, [de sorte] que a mudança cultural ocorre como uma mudança de conversações na rede de conversações que a comunidade que muda vive, e tal mudança surge, se sustenta e se mantém na mudança do emocionar dos membros da comunidade que muda” (Maturana, 1993: 11) (n. i.).
Assim, prossegue Maturana, “o patriarcado surgiu, precisamente, como uma mudança na configuração do emocionar que constituía o fundamento relacional da cultura matrística preexistente. O resultado foi uma mudança no pensar, no gostar, no ouvir, no ver, no temer, no desejar, no relacionar-se... em suma, nos valores conservados geração após geração; quer dizer, o patriarcado surgiu... por meio de uma mudança no espaço psíquico em que viviam os meninos e meninas em crescimento” (Maturana, 1993: 11).
Vejamos, com mais detalhes, como ele explica tal processo: “A maneira de conviver conservada, geração após geração, desde a constituição de uma cultura como uma linhagem ou como um sistema de linhagens que conservam um certo modo de conviver, fica definida, de maneira fundamental, pela configuração do emocionar, que define a rede de conversações que se vive como o domínio particular de coordenações de coordenações de ações e emoções que constitui tal cultura como modo de conviver.
Por isso, cada vez que começa a conservar-se, geração após geração, uma nova configuração no emocionar de uma família, que as crianças aprendem espontaneamente, pelo simples fato de viver nela, surge uma nova cultura.
A nova configuração do emocionar que funda a nova cultura não se conserva porque seja vantajosa ou boa, apenas se conserva, e, enquanto se conserva, a nova cultura persiste e tem história. Em outras palavras: uma nova cultura surge em uma dinâmica sistêmica, na qual a rede de conversações que a comunidade em mudança cultural vive muda guiada e delimitada precisamente pela nova configuração do emocionar que começa a conservar-se na aprendizagem das crianças.
Dizendo ainda de outra maneira: na medida em que as crianças aprendem a viver no novo emocionar e a crescer nele, fazem desse novo emocionar o âmbito no qual seus próprios filhos viverão e aprenderão a viver a rede de conversações que constitui o novo modo de conviver.
Ao tentar compreender como surgiu o patriarcado europeu a que pertencemos como cultura no presente, o que fazemos é olhar as circunstâncias do viver que tornaram possível a mudança no emocionar que, ao mesmo tempo que lhe deu origem como um modo de conviver, constituiu a dinâmica relacional sistêmica que levou à sua conservação, geração após geração, independentemente das conseqüências que teve. Ao fazer isso, não falamos de forças, pressões, vantagens ou outros fatores que se usam com freqüência como argumentos para explicar a direcionalidade do devenir histórico, porque, do nosso ponto de vista, tais noções não se aplicam à dinâmica sistêmica da mudança e da conservação cultural” (Maturana, 1993: 11-2).
É bom ressaltar que, para Maturana, “a história da humanidade tem seguido e permanece seguindo o curso do emocionar e, em particular, o curso dos desejos e não o da disponibilidade de recursos naturais, ou o curso das oportunidades materiais, ou o curso das idéias, valores e símbolos, como se estes existissem como tais em si mesmos. Os recursos naturais existem somente na medida em que desejamos o que distinguimos como recursos naturais. O mesmo ocorre com as idéias, com os valores ou com os símbolos, como elementos que guiam nosso viver, que existem nessa condição somente na medida em que aceitamos aquilo que conotam ou representam. Isso quer dizer que, uma vez que os recursos naturais, os valores, as idéias ou os símbolos aparecem em nossas distinções como fatores ou elementos que guiam o curso de nosso viver, já surgiu antes, de alguma maneira independente deles, o emocionar que os fez possíveis como tais guias do nosso viver. Por conseguinte... para compreender o curso de nossa história como seres humanos, devemos olhar o curso histórico do emocionar humano e, para revelar tal curso, devemos olhar a mudança de conversações que surge da mudança no emocionar, assim como as circunstâncias que dão origem e estabilizam, em cada caso, um novo emocionar” (Maturana, 1993: 10).
Maturana considera dois casos particulares de culturas, que constituem dois modos diferentes de viver as relações humanas, caracterizadas por distintas redes de conversações: a cultura matrística pré-patriarcal européia e a cultura patriarcal européia.
A palavra matrística é empregada, no texto ora citado (Maturana, 1993), “com o propósito de conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário e do hierárquico. A palavra matrístico, portanto, é contrária à palavra matriarcal, que significa o mesmo que a palavra patriarcal, em uma cultura na qual as mulheres têm um papel dominante. Em outras palavras... a palavra matrístico é usada intencionalmente, para referir uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não hierárquica, precisamente porque a figura feminina representa a consciência não hierárquica do mundo natural a que pertencemos os seres humanos, em uma relação de participação e confiança, não de controle nem de autoridade, e na qual a vida quotidiana é vivida em uma coerência não hierárquica com todos os seres viventes, mesmo na relação predador-presa” (Maturana, 1993: 19n).
Para começar, Maturana traça o perfil da cultura patriarcal, quer dizer, da nossa cultura, considerada civilizada. “Em nossa cultura patriarcal, vivemos na desconfiança e buscamos certeza no controle do mundo natural, dos outros seres humanos e de nós mesmos. Continuamente, falamos de controlar nosso comportamento ou nossas emoções, e fazemos muitas coisas para controlar a natureza ou a conduta dos outros, na intenção de neutralizar o que chamamos de forças anti-sociais e naturais destrutivas que surgem da sua autonomia... Em nossa cultura patriarcal, vivemos na desconfiança da autonomia dos outros e estamos nos apropriando, o tempo todo, do direito de decidir o que é legítimo ou não para eles, em uma tentativa contínua de controlar suas vidas. Em nossa cultura patriarcal, vivemos na hierarquia que exige obediência, afirmando que uma coexistência ordenada requer autoridade e subordinação, superioridade e inferioridade, poder e debilidade ou submissão, e estamos sempre prontos para tratar todas as relações, humanas ou não, nesses termos. Assim, justificamos a competição, quer dizer, um encontro de mútua negação, como a maneira de estabelecer a hierarquia dos privilégios sob a afirmação de que a competição promove o progresso social ao permitir que o melhor apareça e prospere” (Maturana, 1993: 25).
A palavra matrística é empregada, no texto ora citado (Maturana, 1993), “com o propósito de conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário e do hierárquico. A palavra matrístico, portanto, é contrária à palavra matriarcal, que significa o mesmo que a palavra patriarcal, em uma cultura na qual as mulheres têm um papel dominante. Em outras palavras... a palavra matrístico é usada intencionalmente, para referir uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não hierárquica, precisamente porque a figura feminina representa a consciência não hierárquica do mundo natural a que pertencemos os seres humanos, em uma relação de participação e confiança, não de controle nem de autoridade, e na qual a vida quotidiana é vivida em uma coerência não hierárquica com todos os seres viventes, mesmo na relação predador-presa” (Maturana, 1993: 19n).
Para começar, Maturana traça o perfil da cultura patriarcal, quer dizer, da nossa cultura, considerada civilizada. “Em nossa cultura patriarcal, vivemos na desconfiança e buscamos certeza no controle do mundo natural, dos outros seres humanos e de nós mesmos. Continuamente, falamos de controlar nosso comportamento ou nossas emoções, e fazemos muitas coisas para controlar a natureza ou a conduta dos outros, na intenção de neutralizar o que chamamos de forças anti-sociais e naturais destrutivas que surgem da sua autonomia... Em nossa cultura patriarcal, vivemos na desconfiança da autonomia dos outros e estamos nos apropriando, o tempo todo, do direito de decidir o que é legítimo ou não para eles, em uma tentativa contínua de controlar suas vidas. Em nossa cultura patriarcal, vivemos na hierarquia que exige obediência, afirmando que uma coexistência ordenada requer autoridade e subordinação, superioridade e inferioridade, poder e debilidade ou submissão, e estamos sempre prontos para tratar todas as relações, humanas ou não, nesses termos. Assim, justificamos a competição, quer dizer, um encontro de mútua negação, como a maneira de estabelecer a hierarquia dos privilégios sob a afirmação de que a competição promove o progresso social ao permitir que o melhor apareça e prospere” (Maturana, 1993: 25).
Em total contraponto configurava-se, para Maturana, a suposta cultura matrística. “A cultura matrística pré-patriarcal européia, a julgar pelos restos arqueológicos encontrados na zona do Danúbio, dos Balcãs e na região Egea, deve ter sido definida por uma rede de conversações completamente diferente da patriarcal. Não temos acesso direto a tal cultura; porém, penso que a rede de conversações que a constituía pode ser reconstruída a partir do que é revelado na vida quotidiana daqueles povos que ainda a vivem e pelas conversações não patriarcais ainda presentes nas malhas da rede de conversações patriarcais que constitui nossa cultura patriarcal hodierna. Assim, penso que devamos deduzir, a partir dos restos arqueológicos mencionados, que o povo que vivia na Europa, entre sete e cinco mil anos antes de Cristo, era composto por agricultores e coletores que não construíam fortificações em seus povoados, que não apresentavam diferenças hierárquicas entre túmulos de homens e de mulheres, ou entre túmulos de homens ou entre túmulos de mulheres” (Maturana, 1993: 25-6).
Ele prossegue: “Também podemos ver que esses povos não usavam armas como adornos e depositavam nos lugares cerimoniais místicos (de culto), principalmente, figuras femininas. Além disso, desses restos arqueológicos podemos também deduzir que as atividades cúlticas (cerimoniais místicos) estavam centradas no sagrado da vida quotidiana, em um mundo penetrado pela harmonia da contínua transformação da natureza, através da morte e do nascimento, abstraída sob a forma de uma deusa biológica na forma de uma mulher, ou de uma combinação de mulher e homem, ou de mulher e animal” (Maturana, 1993: 26).
Maturana supõe que “na ausência da dinâmica emocional da apropriação, esses povos não poderiam ter vivido na competição, uma vez que as posses não eram elementos centrais da existência. Além disso, se, sob a evocação da deusa mãe, os seres humanos eram, como todas as criaturas, expressões de sua presença e, portanto, iguais, nenhum melhor que outro, apesar de suas diferenças; então, não podem ter vivido praticando ações que excluíam sistematicamente algumas pessoas do bem-estar que surgia da harmonia do mundo natural. Penso, por tudo isso, que o desejo de dominação recíproca não deve ter sido parte do viver quotidiano desses povos matrísticos, e que este viver deve ter estado centrado na estética sensual das tarefas diárias como atividades sagradas, com muito tempo para contemplar o viver e viver o mundo sem urgência” (Maturana, 1993: 26).
Nada disso quer dizer, esclarece Maturana, que as pessoas na cultura matrística não vivessem, também como nós e nossos antepassados patriarcais, situações geradoras de infelicidade, dor, aborrecimento e agressão. Porém, essas pessoas “como cultura, diferentemente de nós, não viviam a agressão, a luta, a competição, como aspectos definidores da sua maneira de viver... A partir desta maneira de viver, podemos inferir que a rede de conversações que definia a cultura matrística não pode ter consistido em conversações de guerra, luta, negação mútua na competição, exclusão e apropriação, autoridade e obediência, poder e controle, bom e mau, tolerância e intolerância e justificação racional da agressão e do abuso. Ao contrário, as conversações de tal rede devem ter sido conversações de participação, inclusão, colaboração, compreensão, acordo, respeito e co-inspiração. Não há dúvida de que a presença destas palavras no nosso linguajar moderno indica que as coordenações de ações e emoções que elas evocam ou conotam também nos pertencem, a nós, agora, apesar de nosso viver na agressão. Com efeito, em nossa cultura, reservamos seu uso para ocasiões especiais, porque não conotam para nós, agora, nosso modo geral de viver, ou as tratamos como se evocassem situações ideais e utópicas, mais adequadas para as crianças pequenas do jardim de infância do que para a vida séria dos adultos, a menos que as usemos nessa situação tão especial que é a democracia” (Maturana, 1993: 27).
Não cabe reproduzir aqui todos os argumentos desenvolvidos por Maturana no sentido de mostrar a conservação – ou a supervivência – do emocionar matrístico na infância patriarcal ulterior, que se verificaria, segundo ele, inclusive em nossos dias. Mas é fundamental registrar que, para Maturana, “somente o surgimento da democracia representou, de fato, uma ameaça ao patriarcado, porque a democracia surgiu como uma expansão das conversações matrísticas da infância, de uma maneira que nega as conversações patriarcais” (Maturana 1993: 52).
Um comentário:
Muito bom e elucidativo o texto!
estava em uma pesquisa com muitas indagações sobre sociedades matriarcais e patriarcais. Acredito que achei o equilibrio com as sociedades matrísticas!
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