As considerações de Maturana desembocam, inevitavelmente, numa teoria da democracia. A democracia seria, para ele, um caso particular de mudança cultural, uma brecha no sistema do patriarcado, que surge como uma ruptura súbita das conversações de hierarquia, autoridade e dominação que definem todas as sociedades pertencentes a esse sistema. Essa hipótese da “brecha” introduzida no modelo civilizacional patricarcal pela prática da política como liberdade, i. e., da invenção da democracia e da radicalização da democracia como “alargamento da brecha”, fornece a única base para explicar por que podem surgir sociedades de parceria no interior de sociedades de dominação, ou seja, por que podem surgir comunidades – compostas por conexões horizontais entre pessoas e grupos – e por que tais comunidades podem ser capazes de alterar a estrutura e a dinâmica prevalecentes nas sociedades, hierárquicas e autocráticas, de dominação.
A democracia está fundada no princípio de que é possível aceitar a legitimidade do outro, ou seja, de que os seres humanos podem gerar coletivamente projetos comuns de convivência que reconheçam a legitimidade do outro. Ao contrário da autocracia, em que o modo predominante de regulação do conflito passa pela negação do outro, por meio da violência e da coação, a democracia é, como disse Maturana, um sistema de convivência “que somente pode existir através das ações propositivas que lhe dão origem, como uma co-inspiração em uma comunidade humana” (Maturana, 1993: 62) pelo qual se geram acordos públicos entre pessoas livres e iguais num processo de conversação que, por sua vez, só pode se realizar a partir da aceitação do outro como um livre e um igual.
Hannah Arendt já havia reconhecido essa ruptura com a autocracia que representou a introdução da democracia pelos gregos, a partir da conversação que aceita o outro e não da violência e da coação que o exclui. Por isso, diz ela, "a polis grega trilhou um outro caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens livres, e, com isso, centrou a verdadeira 'coisa política' – ou seja, aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres – em torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como um símbolo de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia" (Arendt, 1950?: frag. 3c) (g. a.).
Segundo Maturana, "a democracia surgiu na praça do mercado das cidades-estado gregas, na ágora, na medida em quem os cidadãos falavam entre si acerca dos assuntos da sua comunidade e como um resultado de suas conversações sobre tais assuntos. Os cidadãos gregos eram gente patriarcal no momento em que a democracia começou a acontecer, de fato, como um aspecto da praxis do seu viver quotidiano... Sem dúvida, todos eles conheciam e estavam pessoalmente preocupados com os assuntos da comunidade acerca dos quais falavam e discutiam. De sorte que o falar livremente sobre os assuntos da comunidade na ágora, como se estes fossem problemas comuns legitimamente acessíveis ao exame de todos, com certeza começou com um acontecimento espontâneo e fácil para os cidadãos gregos.
Porém, na medida em que os cidadãos gregos começaram a falar dos assuntos da comunidade como se estes fossem igualmente acessíveis a todos, os assuntos da comunidade se converteram em entidades que se podiam observar e sobre as quais se podia atuar como se tivessem existência objetiva em um domínio independente, isto é, como se fossem "públicos" e, por isso, não apropriáveis pelo rei.
O encontrar-se na ágora ou na praça do mercado, fazendo públicos os assuntos da comunidade ao conversar sobre eles, chegou a converter-se em uma maneira quotidiana de viver em algumas das cidades-estado gregas... Mais ainda, uma vez que esse hábito de tornar públicos os assuntos da comunidade se estabeleceu, por meio das conversações que os tornava públicos, de uma maneira que, constitutivamente, excluía estes assuntos da apropriação pelo rei, o ofício de rei se fez, de fato, irrelevante e indesejável.
Como conseqüência, em algumas cidades-estado gregas, os cidadãos reconheceram essa maneira de viver por meio de um ato declaratório que aboliu a monarquia e a substituiu pela participação direta de todos os cidadãos em um governo que manteve a natureza pública dos assuntos da comunidade, implícita já nessa mesma maneira quotidiana de viver; e isso ocorreu mediante uma declaração que, como processo, era parte dessa maneira de viver. Nessa declaração, a democracia nasceu como uma rede pactuada de conversações, que:
a) realizava o Estado como um modo de coexistência comunitária, no qual nenhuma pessoa ou grupo de pessoas podia apropriar-se dos assuntos da comunidade, e que mantinha estes assuntos sempre visíveis e acessíveis à análise, ao exame, à consideração, à opinião e à ação responsáveis de todos os cidadãos que constituíam a comunidade que era o Estado;
b) fazia da tarefa de decidir acerca dos diferentes assuntos do Estado responsabilidade direta ou indireta de todos os cidadãos;
c) coordenava as ações que asseguravam que todas as tarefas administrativas do Estado fossem assumidas transitoriamente, por meio de um processo de escolha, no qual cada cidadão tinha de participar, como um ato de fundamental responsabilidade" (Maturana, 1993: 53-4) (n. g.).
Para Maturana, "o fato de que, numa cidade-estado grega, como Atenas, nem todos os seus habitantes fossem originalmente cidadãos, senão que o fossem somente os proprietários de terras, não altera a natureza fundamental do acordo de coexistência comunitária democrática como uma ruptura básica das conversações autoritárias e hierárquicas de nossa cultura patriarcal européia... E o fato de que democracia é, de fato, uma ruptura na coerência das conversações patriarcais, ainda que não as negue completamente, se faz evidente, por um lado, na grande luta histórica por manter a democracia, ou por estabelecê-la em novos lugares, contra um esforço recorrente por reinstalar, em sua totalidade, as conversações que constituem o estado autoritário patriarcal e, por outro lado, na grande luta por ampliar o âmbito da cidadania e, portanto, a participação no viver democrático para todos os seres humanos, homens e mulheres, que estão fora dela" (Maturana, 1993: 53-5).
Não se pode dizer porque as coisas aconteceram exatamente assim, ou seja, tentar justificar o aparecimento da democracia entre os gregos, a partir de uma avaliação distintiva do nível do seu capital social inicial. A democracia – reconheceu o próprio Maturana – é “uma obra [arbitrária] de arte, um sistema de convivência artificial, gerado conscientemente” (Maturana, 1993: 62) (n. i.). Ou seja, aconteceu na Grécia porque os gregos quiseram que acontecesse.
A democracia está fundada no princípio de que é possível aceitar a legitimidade do outro, ou seja, de que os seres humanos podem gerar coletivamente projetos comuns de convivência que reconheçam a legitimidade do outro. Ao contrário da autocracia, em que o modo predominante de regulação do conflito passa pela negação do outro, por meio da violência e da coação, a democracia é, como disse Maturana, um sistema de convivência “que somente pode existir através das ações propositivas que lhe dão origem, como uma co-inspiração em uma comunidade humana” (Maturana, 1993: 62) pelo qual se geram acordos públicos entre pessoas livres e iguais num processo de conversação que, por sua vez, só pode se realizar a partir da aceitação do outro como um livre e um igual.
Hannah Arendt já havia reconhecido essa ruptura com a autocracia que representou a introdução da democracia pelos gregos, a partir da conversação que aceita o outro e não da violência e da coação que o exclui. Por isso, diz ela, "a polis grega trilhou um outro caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens livres, e, com isso, centrou a verdadeira 'coisa política' – ou seja, aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres – em torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como um símbolo de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia" (Arendt, 1950?: frag. 3c) (g. a.).
Segundo Maturana, "a democracia surgiu na praça do mercado das cidades-estado gregas, na ágora, na medida em quem os cidadãos falavam entre si acerca dos assuntos da sua comunidade e como um resultado de suas conversações sobre tais assuntos. Os cidadãos gregos eram gente patriarcal no momento em que a democracia começou a acontecer, de fato, como um aspecto da praxis do seu viver quotidiano... Sem dúvida, todos eles conheciam e estavam pessoalmente preocupados com os assuntos da comunidade acerca dos quais falavam e discutiam. De sorte que o falar livremente sobre os assuntos da comunidade na ágora, como se estes fossem problemas comuns legitimamente acessíveis ao exame de todos, com certeza começou com um acontecimento espontâneo e fácil para os cidadãos gregos.
Porém, na medida em que os cidadãos gregos começaram a falar dos assuntos da comunidade como se estes fossem igualmente acessíveis a todos, os assuntos da comunidade se converteram em entidades que se podiam observar e sobre as quais se podia atuar como se tivessem existência objetiva em um domínio independente, isto é, como se fossem "públicos" e, por isso, não apropriáveis pelo rei.
O encontrar-se na ágora ou na praça do mercado, fazendo públicos os assuntos da comunidade ao conversar sobre eles, chegou a converter-se em uma maneira quotidiana de viver em algumas das cidades-estado gregas... Mais ainda, uma vez que esse hábito de tornar públicos os assuntos da comunidade se estabeleceu, por meio das conversações que os tornava públicos, de uma maneira que, constitutivamente, excluía estes assuntos da apropriação pelo rei, o ofício de rei se fez, de fato, irrelevante e indesejável.
Como conseqüência, em algumas cidades-estado gregas, os cidadãos reconheceram essa maneira de viver por meio de um ato declaratório que aboliu a monarquia e a substituiu pela participação direta de todos os cidadãos em um governo que manteve a natureza pública dos assuntos da comunidade, implícita já nessa mesma maneira quotidiana de viver; e isso ocorreu mediante uma declaração que, como processo, era parte dessa maneira de viver. Nessa declaração, a democracia nasceu como uma rede pactuada de conversações, que:
a) realizava o Estado como um modo de coexistência comunitária, no qual nenhuma pessoa ou grupo de pessoas podia apropriar-se dos assuntos da comunidade, e que mantinha estes assuntos sempre visíveis e acessíveis à análise, ao exame, à consideração, à opinião e à ação responsáveis de todos os cidadãos que constituíam a comunidade que era o Estado;
b) fazia da tarefa de decidir acerca dos diferentes assuntos do Estado responsabilidade direta ou indireta de todos os cidadãos;
c) coordenava as ações que asseguravam que todas as tarefas administrativas do Estado fossem assumidas transitoriamente, por meio de um processo de escolha, no qual cada cidadão tinha de participar, como um ato de fundamental responsabilidade" (Maturana, 1993: 53-4) (n. g.).
Para Maturana, "o fato de que, numa cidade-estado grega, como Atenas, nem todos os seus habitantes fossem originalmente cidadãos, senão que o fossem somente os proprietários de terras, não altera a natureza fundamental do acordo de coexistência comunitária democrática como uma ruptura básica das conversações autoritárias e hierárquicas de nossa cultura patriarcal européia... E o fato de que democracia é, de fato, uma ruptura na coerência das conversações patriarcais, ainda que não as negue completamente, se faz evidente, por um lado, na grande luta histórica por manter a democracia, ou por estabelecê-la em novos lugares, contra um esforço recorrente por reinstalar, em sua totalidade, as conversações que constituem o estado autoritário patriarcal e, por outro lado, na grande luta por ampliar o âmbito da cidadania e, portanto, a participação no viver democrático para todos os seres humanos, homens e mulheres, que estão fora dela" (Maturana, 1993: 53-5).
Não se pode dizer porque as coisas aconteceram exatamente assim, ou seja, tentar justificar o aparecimento da democracia entre os gregos, a partir de uma avaliação distintiva do nível do seu capital social inicial. A democracia – reconheceu o próprio Maturana – é “uma obra [arbitrária] de arte, um sistema de convivência artificial, gerado conscientemente” (Maturana, 1993: 62) (n. i.). Ou seja, aconteceu na Grécia porque os gregos quiseram que acontecesse.
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